terça-feira, abril 15, 2025

Poesia


Minha palavra
Carlos Wagner


Sou lavrador
meu sangue, linfa e saliva
pensamentos e emoções
tudo
produz palavras, extensão de mim
ela sai dúbia, sai certa
sai com marcas, medos e vacilos
busco o ponto certo
evito, às vezes derrotado
não violar ou violentar
evitar o mal entendido
mas, na corda bamba
nada está seguro
mágoas podem chover
das nuvens de meu céu íntimo
posso errar o alvo da intenção
confundir, não clarear
matar, quem sabe?
ou sarar...
Faço silêncio
e com o coração repleto
escolho, ou não
flechas ou flores
doces ou amargas poções
Na real, a vida é experimental
recolho dores ou flores
nas relações, aprendo
e posso passar
ou sofrer novas fases
Palavras são lavras de um canteiro
um cultivo a ser compreendido
não importa se escritas
ditas com a boca e a língua
se digitadas, ditadas, gestos e sinais
virtuais, virtuosas ou nocivas
susurradas, berradas ou cantadas
adocicadas ou envenenadas
sou responsável
pai e mãe delas
elos de mim mesmo
ricocheteando no espelho pra mim
de volta ao criador indefeso
ou incauto
no inevitável auto conhecer
pra ver no que tenho sido.
Carlos Wagner




segunda-feira, abril 14, 2025

Chuva boa criadeira...

A chuva cai, o sapo fica contente
e até alegra a gente
com seu desafio:
Tião...
Oi!
Foste?
Fui
Compraste? 
Comprei!
Pagaste?
Paguei!
Me diz quanto foi...
Foi quinto réis...!





domingo, abril 13, 2025

Meu Jardim

Meu jardim
Carlos Wagner


Meu jardim está maltratado
descuidado, mal arado
sujo e misturado.
Mas não pra sempre
Na volúpia da vida
ervas surgem, secam e ressurgem
plantas de desejos e anseios
medos e sombras
sementes e brotos desejosos
exigentes, e muitas vezes tirânicos
incomodos, mimados
Preenchem os cômodos e os canteiros
áreas de sombras
nascem sem mim ou de mim
sugam a alegria do jardineiro pedinte
dispersam dele a atenção
E ele deseja, como deseja...!
plantar ervas que elevem ao puro solo
Meu jardim está imperfeito
sou um jardineiro anelante
que vê brotarem ervas estranhas
carentes de luz e de Alma Viva
ervas que não entende
nem reconhece
de apegos, dores, vícios e prazeres
Meu jardim inteiro
interior jardineiro
voltou a secar as boas plantas de vida
tudo vai e vem, começo e finitude
O jardineiro anseia
por ervas remédios
pra alma e corpo
curadoras de jardim
e da doente alma-eu mendiga
que ele inteiro beira sarar
Meu jardim é o meu mundo
de sombras e luzes
fugazes alegrias, e dores
Onde dormita a paz?
Quem fez a promessa
que por árduo trabalho
virá limpeza definitiva?
Quem ensina a boa agrimensura?
Onde, como, quanto cuidar?
O jardineiro-eu está impotente
e cego
perdido nos sinais que vê indicarem
a lavoura alvorada
a cura e a pura colheita
Meu jardim me envolve
ouve, devolve, dissolve, revolve
sinaliza símbolos
e desenha segredos
Meu jardim, meu mundo
sou seu andarilho
afogado na néscia perspectiva
de fazer brotar as plantas do elixir
de uma única cura:
Milagrosa e Misteriosa
Meu jardim é desejo constante
da promessa de cura
do Amor, o Remédio Universal
e o jardineiro-eu que sou
mendiga deitado na fonte de Bethesda
grita pela força, morto vivo
a esperar o agitar das águas
Deixar de estar morto, seu sonho
para ver nascer o Jardineiro-Alma
aquele que aguarda ser encontrado
e acionado, o manso
pronto para rejuvenescer o solo
fazer chegar a luz aos cantos
e fazer nascer, brotar, criar
novas ervas e frutos, curadores
irrompendo no solo da Vida real
onde inquilino-me
como Raul, há dez mil anos
Soa o anelo que desperta ervas
de pulsante vida de Amor terno
sanadoras de jardins mal cuidados
abandonados por erro comum
a ignorância errática
de desconhecer a Luz sempre presente
cegada por véus do si mesmo.
Meu jardim, seu jardim
dele jardim
mar de sombras amigas e jasmins
ilusões, tiros de festins
de vida complexa, começo e meios
que não se justificam no fim
onde tudo leva a
abandonar o tudo em torno de mim
Carlos Wagner

sábado, fevereiro 01, 2025

 

Palavra

Carlos Wagner


Palavra
Carlos Wagner
Para onde desejas que eu siga?
tuas letras e sílabas contam caminhos, direções
histórias
sentidos, ideias que a invenção persiga
prossiga
preenches os espaços, memórias e papeis
rabiscos, traços vários
símbolos e sinais
verbo, substantivo, palavras duras, “poréns”
nada além
a mão segue o desenho
caligrafias frias, finas ou mal feitas
bonitas ou imperfeitas
caneta, lápis, giz, telha velha
lousa, parede, muros, camisas
tudo fala o pensável e o improviso
aviso
e se pode ler, entender, desentender
comunica, desobriga, abriga, gera briga
contrata encontros, relata desencontros
felicita
falsifica
credita ou imita
Onde queres que eu me estabeleça?
sigo, como um psíquico canal, vou lá
e aprendo teus caminhos
vales e e montes
És palavra, verbo, espírito
do pensar, a ordem
da vontade, o argumento
as mãos, escrevendo, dizem de ti
palavra pensada e desenhada
somos teus escribas.
Carlos Wagner






 

Jesus e a sanha de Judas



Jesus e a sanha de Judas Carlos Wagner

Um, com um, dois ou mais
como um, como unos
únicos, iguais, simples, comuns
sem o acúmulo, sem peso
a raiz do centro vivo, equilíbrio
que o mundo humano busca adoecido, em luta
longe do centro da quietude
Comum, no único Bem
o absoluto simples, essência da Arquitetura divina, Vida
onde nada é excesso, e jorra ininterrupto
nada falta, nada estanca ou para
sem luta ou estratégia
nada a capitalizar ou guardar
nada a reter, sem desperdiçar
vida una, ofertando aos comuns
unos e diversos, juntos ou dispersos
a vital energia capital, necessária
essencial a tudo, a todos, sinfônica ária
Às aves, aos lírios, aos pequeninos
Reis-meninos, magos e pobres
a cada consciência, tesouros no Céu
lição que Judas negou
Desviou-se
para amealhar capital de Cesar
para guardar tesouros para a igreja
uma igreja concebida por seu próprio medo
Pânico pela Vida Universal
sem chão, sem exércitos
sem bancos ou bancas de vendas
vendados os olhos de medo
nao percebeu
de seu doce Mestre
os tesouros do Coração e do Espirito

terça-feira, junho 11, 2024

RASCUNHO

Carlos Wagner


Rascunho,

rasga o punho

escreve doendo

passa a limpo

molda, cunha a cuia da cozinha 

cozendo em brando fogo

cosendo a costura do cós

da calça surrada

bainha velha

passa a faca

coçando as costas da caça abatida

derramando água da cuia

molhando a secura da mistura

se cura em goles sorvidos

sortidas porções

com o lenitivo de poções curandeiras

rezadeiras e feiticeiras do alívio

dorme o enfermo

até acordar de seu martírio

para seu rascunho de vida mal desenhada

 

Carlos Wagner


sábado, abril 06, 2024

 Macunaima

Carlos Wagner
Macunaima, que susto!
esteve aqui hoje
logo de manhã
mamãe, que é isso?
na lapela um broche
com Suassuna, muito sério
com ar de deboche
projetou na minha tela
um video cassete
e disse:
superheróis existem
têm fardas e cassetetes
pra abordagens tete a tete
autorização que vem de cima
zombou Macunaima
na sequência
cadeiras de roda, disse
são tanques perigosos
de guerra mesmo!
cadeirantes têm armas
têm nelas poder
criminosos criminantes
podem ser muito perigosos
pretos então, são sempre insidiosos
não é?
pobres, quase invisiveis
não têm nem família normal
"como pode?"
não tem carro nem patinete
circulam vagarosos
"empecilham" o transito
Porches então
cadeirantes nunca terão
que de tão rápidas
ninguem vê se aproximar
nem os Superherois viram
nem álcool trôpego bafaram
na cena forjada
nada, pensaram
nao ornam nem rimam
ja cadeiras
pra espremer Porhes no poste
nossa
têm poder
Superherois não dão mole
batem batem sim
batem, no fim do dia, o ponto
sem bafômetro, sem reprimenda tudo está dentro do sim
e sorriso
o moleque cidadão, tem pedigree
e é claro
"keep him free"
Esse Macu é muito doido
veio rápido
nem explicou nada
saiu daqui meio que afoito
dizendo que uma amiga
certamente uma fada
brandiu no ar uma vara
um chicote e um martelo
Macu
com careta estranha
confirmou
"não se assuste"
- voltarei
com novas farras e fardas
novos sinais de embuste
mesmo que você se fruste
e muita dor lhe custe.
Prepara sua tela!

Carlis Wagner

quinta-feira, julho 29, 2021

Suposto oposto

 Suposto oposto

Carlos Wagner
Casas, asas, aspas, paz...
frentes, entes, lentes, têz,
testemunhas do apagar, garras
desfiguram-se,
transmitem-se,
transmutam-se em semelhanças de nada,
mínimo foco,
identidade de não-ser,
Lao, Tao, Tse, se se é o “não é”...
ser pequeno, um quase nada,
um quase ameno, um quase a menos,
um quase infinito ínfimo
sentido de ser importante enquanto pouco,
desimportante enquanto projeto,
desencanto com o produto,
complacência pelo processo.

Carlos Wagner


sexta-feira, maio 21, 2021

 As dores do mundo, ou lamento inacabado

Carlos Wagner


Nas dores do mundo, Schopenhauer dizia:

"Só a dor é positiva...."

Eu quase entendi...

E sim, posso entender.


O mundo muitas vezes dói demais.

O olhar da alma se volta, 

O olhar mira os quatro cantos

E vê que o mundo arde.

Está em chamas!


A dor de muita gente, a dor de povos

A dor na pele da alma, os olhos não creem

A dor dos fracos enfraquecidos,

Nascidos ou por nascer, 

ou natimortos pela lógica do absurdo,

Vórtices do encontro do poder descomunal,

Açoitando o poder nenhum.


Há quem diga: "foi sempre assim"

É o mais certo...

Não se resolve, parece...


E o coração da gente, fica pequenininho 

Abafado lá dentro

Encurralado

Sem resposta

Sem ação qualquer.


A mente busca fazer qualquer coisa

Entender, construir uma fuga,

Teorizar sem sossego...

Ah, Sossego, artigo de super luxo 

de uma consciência adormecida, ou desejosa por dormir.


Enquanto isso, guerras e rumores de guerras de fato,

Tecem o cenário que se impõe normal 

E se expõe anormal.


E no meu peito, coração não aceita,

Grita perplexo, e geme,

"não se cansa de ter esperança"

Avança e acorda minha razão


Ela tem paciência com a minha jornada!


Carlos Wagner

terça-feira, março 09, 2021

 


segunda-feira, dezembro 28, 2020

Uma mensagem de Natal

 Carlos Wagner 25 dez 2020
Quero aqui deixar expresso um voto e um desejo nascido da oportunidade do momento em que a maioria no mundo cristão devota seus pensamentos e reflexões a uma ideia de renovação e elevação pelo Amor.

Deixo humildemente e sem nenhuma pretensa autoconsideração de superioridade, consciente da minha pequenez, o seguinte pensamento:
Que tenhamos um bom dia de reflexão revolucionária de Amor, de Esperançar, de Fé numa vida não egoísta, sem preconceitos, sem racismo, sem homofomofobia e outras formas de ódio fóbico, com soberania da consciência de que somos verdadeiramente irmãos e irmãs, filhos deste planeta, nossa casa maravilhosa!
Que a solidariedade possa nos fazer mais sensíveis aos desassistidos e necessitados, arrancando de nós a frieza dos cálculos econômicos estéreis e das equivocadas ideias de "meritocracia". E que a dor dos outros não seja mais e somente a dor dos outros, mas também a nossa, pra nos tirar de nossas fortalezas inalcançáveis.
Que essa reflexão possa formar e se transformar em nós, paulatinamente, numa base sólida e ser elevada a uma verdadeira Espiritualidade Superior não dogmática, onde todos os grandes do Espírito fizeram morada e nos prepararam nossos lugares!
Sei, obviamente, que esse é um sonho, como de Imagine de Lennon, mas que pode ser também uma semente de busca e transformação.
Pra mim só assim tem sentido o "Natal", um nascimento interior que quer ser exteriorizado nas minhas atitudes imediatas.
Que os Corações, as Cabeças e as Mãos de todos os assim transformados possam ser cada vez mais numerosas no mundo inteiro!
Um Feliz "Natal" assim concebido, em qualquer momento do ano!

 CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Carlos Drummond
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois medrosas.

                            ( De Sentimento do Mundo)

sábado, setembro 05, 2020

Brasil, o país que escolheu a Morte!

 *Desculpem o peso do texto que público aqui.*

*Brasil  o país que escolheu a Morte!*



Texto importantíssimo da jornalista Eliane Brum, do El País, que ilustra bem os ideais defendidos por este grupo. Artigo publicado em 03/09. Leitura obrigatória para o feriado da independência.


7 DE SETEMBRO: MORTE


Se este 7 de Setembro transcorrer como se o Brasil vivesse algum tipo de normalidade, enterremos nossos corações, porque já estarão mortos. Devemos então parar de fingir que estamos vivos e assumir nossa condição de zumbis. Não o dos filmes, que tentaram escapar dessa condição. Mas os que escolhem ser contaminados pela normalidade criminosamente anormal. A covardia é uma forma de existência a qual se escolhe. Este país está cheio de oportunistas, sim. Mas também está cheio de covardes incapazes de defender qualquer território para além da sua família, porque também o sentimento de comunidade foi persistentemente destruído. Em 7 de Setembro de 1822, quando se aliviava de uma diarreia insistente no riacho Ipiranga, em São Paulo, o príncipe português Dom Pedro I teria gritado: Independência ou Morte! Depois de 198 anos, já entendemos que o Brasil sempre escolheu a morte. Mas jamais, em nenhum outro momento de sua história, o país havia alcançado esse nível de perversão sob o título formal de democracia. Negros e indígenas vivem uma longa história de extermínio, mas esta é a primeira vez em que um Governo construiu uma máquina de morte. Temos um genocida no poder, e ele está matando tanto quanto deixando morrer. Tem intenção, tem plano e tem ação sistemática.


Os quatro pedidos de investigação de Jair Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional não são um jogo político de retórica. São a denúncia de que o judiciário brasileiro não consegue ou não quer barrar os crimes de Bolsonaro e de outras pessoas com cargos de poder no Governo, sejam generais ou civis. Se conseguisse ou quisesse, como os fatos já mostraram, Bolsonaro nem poderia ter sido candidato. Ele é o resultado, como já escrevi, de uma longa série de impunidades iniciada ainda quando era militar. Foi absolvido no Tribunal Superior Militar, em um julgamento povoado de indícios de fraudes, de planejar um ato terrorista com um motivo corporativo: botar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. Só se tornou presidente pela vocação característica do sistema judiciário brasileiro: a de punir severamente os pretos e pobres e despachá-los para um sistema carcerário incompatível com qualquer ideia de civilização, mas perdoar ou deixar de julgar os ricos e brancos. Especialmente se estes forem militares e tiverem o privilégio de uma justiça paralela que escolhe inocentes e culpados com base não nos fatos, mas nos interesses corporativos de uma instituição que se considera acima da Constituição.


Bolsonaro é brasileiríssimo. A criatura que está matando os Brasis que considera obstáculos ao seu projeto de poder, assim como as populações que despreza (indígenas e negros), é a versão mais bem acabada – e por isso tão terrivelmente mal acabada – de todas as deformações. As que os governos anteriores não quiseram corrigir, pelas mais variadas razões, as que as diferentes elites estimularam, para manter seus privilégios, as que o povo se acostumou a conviver.


O Brasil chega a este 7 de Setembro com os símbolos nacionais sequestrados pelo bolsonarismo. A bandeira foi sequestrada, o hino foi sequestrado, as cores foram sequestradas. Porque o bolsonarismo não se coloca como uma parte do Brasil, mas como o todo. Os outros Brasis e brasileiros que se opõem a ele são considerados e tratados como não brasileiros, como aqueles que precisam ser expulsos ou eliminados porque não deveriam estar aqui. O seu discurso no telão da Paulista, pouco antes do segundo turno das eleições de 2018, quando a vitória já era certa, é explícito: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil (...) Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”. Percebam. Não a lei do Brasil, que é a Constituição, mas “a lei de todos nós”. E esclareceu quem são “nós”: “O Brasil de verdade”.


O bolsonarismo é, em sua gênese e na sua estrutura, incompatível com a democracia. Na minha opinião, também incompatível com a civilização. O fato de Bolsonaro ter sido eleito não altera sua vocação totalitária nem sua lógica de eliminação dos opositores como “falsos brasileiros”. Ao contrário. Ao ser candidato, apesar de todos os crimes que já tinha cometido, a começar pelo de apologia à tortura, Bolsonaro desmoraliza e destrói uma combalida democracia que jamais foi capaz de julgar os crimes da ditadura e por isso jamais foi capaz de se proteger de criminosos como Bolsonaro.


Bolsonaro não apenas leva os generais de volta ao Governo e militariza toda a máquina pública, o que pareceria impossível apenas alguns anos atrás, para um país que viveu uma ditadura militar de 21 anos. Ele também carrega para o Planalto a lógica de guerra dos regimes totalitários. Na ditadura iniciada com o golpe de 1964, os “inimigos da pátria” eram os opositores políticos, especialmente os estudantes que a ela resistiram também com luta armada. No regime criado pelo bolsonarismo, que já não podemos chamar de democracia, os inimigos da Pátria são ampliados para todos aqueles que se opõem democraticamente a ele e a todos aqueles que são obstáculos ao projeto econômico de grupos no poder. Os opositores, como ele disse, devem ser levados à “Ponta da Praia”, referindo-se a um local de tortura e desova de cadáveres na ditadura, no Rio de Janeiro. Já os indígenas, principal obstáculo ao projeto de exploração da Amazônia, são tratados como uma espécie inferior: “cada vez mais humanos iguais a nós”. Aos quilombolas, outro obstáculo, ele se refere com termos usados para animais: “nem para procriadores servem”.


De certo modo, Bolsonaro vai além da ditadura militar na qual se inspira ao tornar “brasileiros de verdade” apenas os fiéis de seu culto político ― e falsos todos os outros. Porque ele não é apenas um “mau militar”, como definiu o ditador e general Ernesto Geisel. Bolsonaro está também aliado aos pastores de mercado e ao ruralismo mais predatório. Bolsonaro emprestou à lógica da guerra dos generais uma versão bíblica do bem contra o mal, explicitada pelos brasileiros de verdade e pelos brasileiros de mentira. Estes devem ser expulsos ou eliminados não apenas como inimigos, mas como infiéis da pátria. Para consolidar sua vitória colocou em campo uma máquina de propaganda, o chamado “gabinete do ódio”, que poderia ser elogiada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. O bolsonarismo converteu todos aqueles que se opõem a ele em inimigos da pátria, do mesmo modo que o nazismo fez com os judeus num primeiro momento. Com os indígenas e com os negros, ele já entra numa segunda etapa, ao considerá-los apenas quase humanos como “nós”.


Bolsonaro e o bolsonarismo, que vai muito além dele, faz uma colagem dos totalitarismos do século 20 com a versão bíblica do evangelismo de mercado que se consolidou na política partidária neste século e alcançou o poder central com a eleição de 2018. Se fossem contemporâneos, Adolf dificilmente teria prazer em se sentar à mesa com Jair, porque a vulgaridade do presidente brasileiro o escandalizaria. Hitler queria criar sua própria arte e estética. Bolsonaro, pelo menos por enquanto, só quer destruir qualquer forma de arte. É o supremacista que prega (também) a supremacia da estupidez como a vingança dos ressentidos.


Bolsonaro não precisou criar seus campos de morte. Deixou a covid-19 avançar e agiu para reter recursos públicos destinados ao enfrentamento da doença, para afastar os quadros técnicos com experiência em saúde pública e epidemias, para vetar medidas decisivas de prevenção e para tumultuar o combate ao vírus. Também incentivou a invasão das terras indígenas e das áreas protegidas por grileiros e garimpeiros. Se a pandemia acabasse hoje, este já é um Brasil sem muitas das grandes lideranças que lideraram seus povos na luta pelo direito a viver em suas terras ancestrais e para manter a floresta amazônica e outros biomas em pé. Parte dos opositores de Bolsonaro, na Amazônia que mais uma vez volta a queimar, morreram nos últimos meses. E a pandemia ainda está longe de acabar.


A mais recente liderança indígena morta por covid-19, em 31 de agosto, foi Beptok Xikrin, 78 anos, conhecido como Cacique Onça. Voltou à sua aldeia, no Médio Xingu, em um caixão fechado, enfiado em uma lona, amarrado a uma caminhonete como se coisa fosse, na mais abjeta indignidade. Não basta matar ou deixar morrer, é preciso humilhar, quebrar a espinha dos povos indígenas também pelo insulto e pela desonra.


Mesmo para quem tem baixa expectativa com relação à decência das várias elites brasileiras, é custoso compreender como ainda chamam o que hoje há no Brasil de democracia. O que aí está não é bom nem mesmo para o “mercado”, essa entidade pronunciada com reverência. Que tipo de crença leva alguns setores, mesmo da imprensa, a considerar, depois de um ano e meio de governo, que há alguma composição possível com o bolsonarismo? A ação das elites não foi diferente nos processos totalitários do século 20, mas ainda assim é espantoso.


Muitos dos que votaram em Bolsonaro usaram o discurso anticorrupção como desculpa para votar num homem que se anunciava publicamente como defensor da ditadura e da tortura e que festejava como herói Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel, assassino e o único torturador reconhecido pelo judiciário brasileiro. E agora, quando não há mais desculpa? Quando Bolsonaro se abraça ao Centrão para se proteger de um impeachment? Quando Bolsonaro se abraça a Michel Temer para se aproximar do MDB? Quando o procurador-geral da República, escolhido fora da lista tríplice, se tornou office-boy de Bolsonaro, cobrindo de vergonha a instituição chamada Ministério Público Federal? Quando o herói da Lava Jato foi expelido do Governo? Quando Adriano da Nóbrega, miliciano chefe do grupo de assassinos de aluguel Escritório do Crime, foi morto e enterrado com tudo o que sabia sobre as ligações perigosas da família Bolsonaro? Quando Fabrício Queiroz, depois de meses escondido em uma das casas do advogado de Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, foragida, conseguem uma surpreendente prisão domiciliar? Quando um desembargador, sozinho, é capaz de afastar um governador do Estado inimigo de Bolsonaro e com poder para decidir os cargos de quem vai tocar (ou não) os processos sobre a família presidencial? Quando as denúncias de corrupção batem no peito de Bolsonaro, na forma da pergunta que faz Bolsonaro querer “encher a boca” do repórter “de porrada”? Esta pergunta aqui:


“Presidente Bolsonaro, por que a sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil de Fabrício Queiroz?”


Agora, quando há duas enormes perguntas assombrando a família Bolsonaro. Esta e a outra, que se repete há mais de 900 dias sem nenhuma resposta:


“Quem mandou matou Marielle Franco? E por quê?


A pauta anticorrupção como justificativa para votar em um homem com o passado e o presente de Bolsonaro sempre foi fingimento. Desconfio que alguns fingiram tanto que até acreditaram. E assim chegamos ao 7 de Setembro com uma oposição partidária fraca, a esquerda ocupada brigando entre si e a direita buscando se consolidar como uma espécie de poder moderador da extrema direita no poder. Dilma Rousseff (PT) foi arrancada da presidência supostamente por ter praticado “pedaladas fiscais”. A folha corrida de crimes de responsabilidade muito mais graves de Bolsonaro está dando volta no quarteirão. E, mesmo assim, Rodrigo Maia (DEM) acomodou seu traseiro sobre uma pilha de dezenas de pedidos de impeachment, um deles da Coalizão Negra por Direitos, com base no agravamento do genocídio dos negros.


Gostaria de dizer que há momentos em que um povo decide se é um povo ou um amontoado de gente “tocando a vida”, como mandou o déspota eleito que nos carrega para a morte. Gostaria de dizer, mas não digo. Porque não acredito que temos um povo, no sentido de uma massa de pessoas com a mesma nacionalidade que luta por valores comuns. Talvez não tenhamos um povo. Mas temos povos. Nas periferias e favelas urbanas deste país há gente se organizando e lutando e criando possibilidades de viver apesar de todas as formas de morte. Se ainda existe a Amazônia é porque camponeses e povos da floresta lutam, mesmo sendo abatidos a tiros ― e agora também pela covid-19. Nas cidades, os movimentos de sem-teto se organizam pelo direito da ocupação da cidade para a vida e não para a especulação imobiliária. No campo, os agricultores familiares insistem em alimentar o país sem agrotóxicos enquanto Bolsonaro libera mais de um veneno por dia. Há homens e mulheres barrando a destruição da natureza com seus corpos em cada dobra do país. Há rebeliões por todos os Brasis, avançando nas fissuras, pelas bordas.


Não são os mais frágeis que se mantêm em pé. São os fortes. Há 500 anos há um Brasil tentando matar todos os indígenas ― pela assimilação, pela contaminação ou por bala. E, ainda assim, a população indígena cresceu nas últimas décadas. Desde a abolição formal da escravidão, os negros foram deixados para morrer, e ainda assim os negros se tornaram a maioria ― 56% ― da população brasileira. Viver ― contra todas as formas de extermínio ― tem sido o ato mais radical de resistência das populações invisibilizadas, oprimidas e tratadas como subalternas.


Neste momento, as gerações que hoje vivem enfrentam seu maior desafio. Bolsonaro converteu o Estado numa máquina de morte. Tão perversa que viu na covid-19 uma maneira de eliminar aqueles que barravam com seus corpos seu projeto de poder. Suas ações deliberadas são encobertas com aparições midiáticas, discursos golpistas, o jogo de cena da cloroquina e a falácia da defesa da economia. O bolsonarismo controla quase que totalmente o noticiário enquanto o genocídio é a política persistente que avança na camada atrás dos holofotes dos factoides, sem encontrar oposição capaz de pará-la.


Hoje, Bolsonaro alcançou mais do que o seu sonho. Ele queria que a ditadura militar, que formou os generais que o apoiam, “tivesse matado pelo menos mais uns 30 mil”. Sua negligência intencional na resposta à covid-19, sua campanha oficial de desinformação, seu exemplo pessoal de irresponsabilidade são a principal causa da ampla disseminação da doença no Brasil. Também neste momento, a Amazônia queima mais uma vez e se aproxima velozmente do ponto de não retorno. O Parlamento Europeu já estuda considerar a destruição da maior floresta tropical do mundo, praticada deliberada e sistematicamente por Bolsonaro, um crime contra a humanidade.


Neste 7 de Setembro, chegamos ao ponto no Brasil em que afirmar que o presidente é “apenas” incompetente significa ajudá-lo a se safar de ser responsabilizado por crimes contra a humanidade. Incompetência é terrível e traz graves consequências, mas não é crime. Os fatos mostram que Bolsonaro foi deliberadamente incompetente, intencionalmente negligente, sistematicamente irresponsável. Bolsonaro e seu Governo planejaram e agiram, como mostra o Diário Oficial da União, suas manifestações nas redes e os vídeos com suas declarações públicas.


A data mais simbólica do Brasil não pode passar como se fosse normal ter um genocida no poder. Se deixarmos o genocídio se normalizar, não haverá vida neste país nem mesmo para aqueles que, por sua posição na cadeia alimentar da desigualdade brasileira, acreditam sempre estar a salvo. Neste 7 de Setembro, há movimentos de resistência dos Brasis insurgentes se levantando contra a máquina de morte do bolsonarismo. Há gente com coragem de nomear o que está acontecendo no Brasil. Não sei se seremos muitos ou poucos. Provavelmente poucos, mas, como os mortos da covid-19, inumeráveis. Há momentos em que tudo o que podemos fazer é lutar, mesmo sabendo que vamos perder porque a maioria vai estar tocando a vida ― e seguirá tocando a vida enquanto considerar que é só a vida do outro que está em risco. Talvez a pergunta mais importante deste 7 de Setembro seja: como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?


Resistindo. Declarando sua independência, porque morte já há demais. No momento, quase 125 mil corpos. Rebelando-se. Não porque agora seja possível ganhar. Mas para não ser obrigado a baixar os olhos quando as crianças perguntarem no futuro próximo de que lado você estava e o que você fez para impedir Bolsonaro de seguir matando.


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Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. 

elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: Eliane Brum

sábado, agosto 22, 2020

Walt Whitman

 Walt Whitman

E sei que sou imortal,
sei que minha órbita não pode ser medida pelo compasso do carpinteiro,
Sei que não apagarei como espirais de luz que crianças fazem à noite com graveto aceso.
Sei que sou sublime,
Não torturo meu espírito para que se justifique ou seja compreendido,
Vejo que as leis elementares nunca se desculpam,
Percebo que não ajo com orgulho mas elevado que o nível onde planto minha casa, afinal.
Existo como sou, isso me basta,
se ninguém mais no mundo está ciente, fico contente,
e se cada um e todos estão cientes, fico contente.
Meu pedestal é encaixado e entalhado em granito.
Dou risada do que você chama de decomposição,
sei da amplidão do tempo.
Sou poeta do corpo,
e sou o poeta da alma...
Walt Whitman

sexta-feira, agosto 21, 2020

 


Cantiga de Malazarte
Murilo Mendes
Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.
- Murilo Mendes, em "Poemas - 1925-1929". Juiz de Fora: Dias Cardoso, 1930.

Todos novos em Capetinga

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Olha aí o pessoal lá de antes...

O lobo da estepe - Hermann Hesse

  • O lobo da estepe define minha personalidade de buscador

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