terça-feira, setembro 13, 2011

Texto lúcido


Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo
Estimadíssimos milhares de leitores, cá estamos, à véspera do 11 de setembro de 2011, dez anos desde então.
Espero que vocês não saibam, mas eu estava lá. Eu faço que esqueço, mas estava, e nessas datas jornais sempre descobrem que eu estava lá e acabo falando a respeito, e falo em respeito ao dia e às vítimas, e em respeito ao direito que as pessoas têm de saber o que aconteceu naquele dia, mesmo que o que eu saiba seja pouco e nada mais ou melhor do que o que todos sabem. Saber é uma coisa, caros leitores, e viver é outra. Saber, todos sabemos. Viver, eu vivi, e preferia não ter vivido, simples assim.
Porque dói demais, estimados leitores. Estou aqui escrevendo e fazendo beiço e sorte a minha terrível avó Jovita não estar por perto, porque então eu ia ver só. Homem não fazia beiço, no mundo da minha avó. Acho que homens também não pegavam aviões cheios de pessoas e os jogavam contra prédios cheios de pessoas no mundo da minha avó, mesmo que certamente fizessem outras barbaridades.
O que acontece é isso, caros e estimados leitores. A humanidade vem se aperfeiçoando desde que começou a domesticar gramíneas e inventar cidades. Ela criou o teatro grego, a arquitetura romana, a cerveja, as catedrais, o teatro shakespeareano, a música sinfônica, o mais pesado do que o ar, o boteco de esquina e a televisão, juntamente com a antena e o bombril. Ela criou o bronze, o aço, o arco composto, o estribo, a pólvora, o canhão, o muro, a invasão do muro, a metralhadora, o gás mostarda; a bomba atômica e a testou em Hiroshima e Nagasaki, o bombardeio incendiário e o testou em Hamburgo e Dresden; ela inventou Auschwitz e o napalm. A cada avanço de uma bondade, um avanço na maldade, e assim a gente vem se equilibrando sobre o planeta, desde sempre. O dia 11 de setembro foi um passo adiante no avanço da maldade e quem estava em Nova York mais do que entendeu, sentiu. Eu andava pela rua, num dia absurdamente azul e com ar frio e sentia a maldade descendo do céu na forma de poeira (Grifo meu, Carlos Wagner). A gente olhava ao redor e via pessoas subindo cobertas de entulho caído dos céus. Os americanos inventaram o arranha-céu, e dessa vez o céu se abriu e jogou tudo lá de cima aqui em baixo, pessoas inclusive, bombeiros que tinham subido lá para salvar pessoas, inclusive. Houve muita morte naquele dia, e isso se sente, caros leitores.
Eu fui para um encontro de amigos escritores, estava em um hotelzinho na Union Square, a uns 3 quilômetros das torres. Acordei de uma festa, com dor de cabeça e sem saber de nada. Não vi os aviões atingindo as torres, não teria sido possível de onde eu estava. Vi as pessoas subindo a avenida, os caminhões de bombeiros cobertos de pó, tentei ir até o local, porque jornalista é assim: gente corre pra longe, eles correm pra perto. Mas a área estava isolada, e a verdade é que ninguém sabia o que iria acontecer. Ninguém sabia se eram mesmo dois aviões ou haveria mais caindo sobre a cidade. Ninguém sabia se o ataque era aquele ou haveria mais maldade. Nessas horas, a gente simplesmente não sabe e não entende.
O que eu vi foi uma cidade reagindo com uma calma invejável. Eu gostaria de sentir que seríamos capazes da mesma compostura numa hora dessas. Minha avó Jovita esperaria isso de nós, não sei se a atenderíamos. No dia 11 as pessoas ainda estavam em choque, mas um choque contido, ninguém falava alto, ninguém demonstrava medo. No dia 12, com o metrô funcionando, se via uma enorme tristeza se abatendo sobre todos. Mas nenhuma agressividade, nenhuma fala de vingança, apenas uma dor coletiva. A mim, nada aconteceu. Não passei qualquer dificuldade maior, fome, frio, nada. No dia seguinte, amigos que iam para Chicago de carro me convidaram e fui junto, esperar voos para o Brasil. Eu fui um daqueles caras intocados pelo terremoto, que nem ao menos ficam no lugar para viver as consequências. No entanto, todos vivemos as consequências hoje e por muito tempo, porque as grandes maldades alteram o que chamávamos de normalidade.
Eu estava em Chicago em 2003, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, um desastre que não começa com o 11 de setembro, mas é viabilizado por ele. Bush e falcões se aproveitam do clima com interesses claros e que a ninguém mais atendem, meio como a Al Qaeda, mas por outros caminhos. E é nesse mundo que todos vivemos, muito em especial os iraquianos, as maiores vítimas desse jogo.
Nosso 2011 também é o ano em que a parte árabe da humanidade resolveu dar o troco com a enorme bondade da derrubada em série dos tiranos deles, mostrando que sim, eles amam a liberdade e sim, a desejam e produzem.
Nesse 11 de setembro é nisso que eu vou pensar, enquanto pego um voo, e vejam só, para a Venezuela, onde vou lançar livro, dar seminário e falar de cinema. A vida é a soma das bondades que fazemos, menos as nossas pequenas maldades. Nessa matemática todos temos a nossa parcela a contribuir, pra lá, ou pra cá. Vou tentar ser um bom ser humano nessa semana, uma pequena maneira de apagar um pouco da sensação do 11 de setembro, aquela que insinua que nós, a humanidade no atacado, e pessoas no varejo não temos jeito. Temos sim. Apenas não é tão fácil, e, por vezes, é muito difícil, só isso. Só isso, meus caros e estimados leitores, e até a volta.

segunda-feira, setembro 12, 2011

Da coleção Gítanjali do poeta Rabindranath Tagore

"De porta em porta eu andara mendigando pelo caminho da aldeia, quando o teu carro de ouro apareceu na distância como um sonho deslumbrante e eu me perguntei se seria esse o Rei de todos os reis! O carro parou onde eu estava. Teu olhar caiu sobre mim e tu desceste com um sorriso inesperadamente estendeste-me a tua mão direita e disseste: “que tens tu para me dar?”
Fiquei confuso e parei indeciso; do meu alforje então, lentamente tirei e dei-te o grão de trigo menor de todos. Mas, que grande surpresa foi a minha quando, pelo fim do dia, entornando no chão a minha sacola, encontrei entre as migalhas um grão de ouro que era o menor de todos! Amargamente chorei, lamentando não ter tido coragem de me haver dado todo a ti!"

- Da coleção Gítanjali do poeta Rabindranath Tagore.


FLOR-DE-LÓTUS

No dia em que a flor de lótus desabrochou


A minha mente vagava, e eu não a percebi.


Minha cesta estava vazia e a flor ficou esquecida.


Somente agora e novamente, uma tristeza caiu 


sobre mim.


Acordei do meu sonho sentindo o doce rastro


De um perfume no vento sul.


Essa vaga doçura fez o meu coração doer de 


saudade.


Pareceu-me ser o sopro ardente no verão, 


procurando completar-se.


Eu não sabia então que a flor estava tão perto de 


mim


Que ela era minha, e que essa perfeita doçura


Tinha desabrochado no fundo do meu coração.


Tagore

domingo, setembro 11, 2011

O cadinho e peneiras...


"O livro de Mirdad" 


 Mikail Naymy


Cadinho e Peneiras.

 


A Palavra de Deus e do homem.


A Palavra de Deus é um cadinho.




O que ela cria, derrete e funde em todo, nada aceitando como valioso, nada rejeitando como sem valor.
Possuindo o Espírito de Compreensão, sabe muito bem que ela e a sua criação constituem um todo; que rejeitar uma é rejeitar tudo; que rejeitar o todo é rejeitar-se a si mesmo. Conseqüentemente, ela tem para sempre o mesmo objetivo e o mesmo sentido. 


Entrementes, é como uma peneira a palavra do Homem. O que ela cria, prende e expulsa. Está sempre tornando isto como amigo e expulsando aquilo como inimigo. Mas, freqüentemente, o amigo de ontem torna-se o inimigo de hoje; o inimigo de hoje, o amigo de amanhã.


E assim se desencadeia a cruel inútil guerra do Homem contra si mesmo. Tudo porque falta ao Homem o Espírito Santo, o único que pode fazê-lo compreender que ele e a sua criatura são uma e a mesma coisa; que expulsar o adversário é expulsar o amigo, pois ambas as palavras — “adversário” e “amigo” — são criações de sua palavra — de seu eu.


Aquilo de que não gostais e atirais fora como sendo mau, é certamente apanhado por alguém ou algo como sendo bom. Pode acaso ser, ao mesmo tempo, duas coisas que se excluam? Ela não é nem uma coisa nem outra, foi o vosso eu que a fez má; outro eu a fez boa.


Não vos disse que aquele que pode criar pode também destruir? Tal como criastes um inimigo, podeis destruí-lo e tornar a criá-lo como amigo. 


Para isso, o vosso EU precisa de um cadinho. Para isso necessitais ter o Espírito de Compreensão.


Por isso vos digo que se orais por algo, orai emprimeiro e último lugar, pedindo Compreensão. Nunca sejais peneiradores, meus companheiros, pois a Palavra de Deus é Vida e a Vida é o cadinho no qual tudo se faz uno e indivisível; tudo fica em perfeito equilíbrio e tudo é digno de seu autor — a Triunidade Santa.


Quanto mais digno deve ser de ti!


Nunca sejais peneiradores, meus companheiros, e tereis uma tão imensa estatura, tão onipenetrante e tão oniabrangedara que não haverá peneiras que vos possam conter.


Nunca sejais peneiradores, meus companheiros; procurai em primeiro lugar o conhecimento d’A Palavra para que possais conhecer a vossa própria palavra. E quando souberdes a vossa palavra laçareis ao fogo todas as vossas peneiras pois a vossa palavra e a de Deus são a mesma, somente que a vossa ainda está sob os véus.


Mirdad vos pede que jogueis fora os véus.


A Palavra de Deus é o Tempo e o Espaço, não medidos. Houve acaso algum tempo em que não estivésseis com Deus? E há algum lugar em que não estejais em Deus? Por que acorrentais então a eternidade com horas e com estações? E por que encerrais o Espaço em polegadas e milhas?


A Palavra de Deus é Vida não nascida e, portanto, imortal.

sábado, agosto 13, 2011

Versos do Bhagavad-gita


47. Tens o direito de executar teu dever prescrito, mas não podes exigir os frutos da ação. Jamais te consideres a causa dos resultados de tuas atividades, e jamais te apegues ao não-cumprimento do teu dever. 
48. Desempenha teu dever com equilíbrio, ó Arjuna, abandonando todo o apego a sucesso ou fracasso. Essa equanimidade chama-se yoga. 
49. Ó Dhanañjaya, através do serviço devocional, mantém todas as atividades abomináveis bem distantes, e com esta consciência, rende-te ao Senhor. Aqueles que querem gozar o fruto de seu trabalho são mesquinhos. 
50. Um homem ocupado em serviço devocional livra-se tanto das boas quanto das más ações, mesmo nesta vida. Portanto, empenha-te na yoga, que é a arte de todo o trabalho.
51. Ocupando-se nesse serviço devocional ao Senhor, grandes sábios ou devotos livram-se dos resultados do trabalho no mundo material. Desse modo, eles transcendem ao ciclo de nascimentos e mortes e passam a viver além de todas as misérias. 
52. Quando tua inteligência tiver cruzado a densa floresta da ilusão, tornar-te-ás indiferente a tudo o que se ouviu e a tudo o que se há de ouvir. 
53. Quando tua mente deixar de perturbar-se pela linguagem florida dos Vedas, e quando se fixar no transe da auto-realização, então terás atingido a consciência divina.

quarta-feira, julho 20, 2011

Texto para reflexão...

11/07/2011 - 09:41 - ATUALIZADO EM 11/07/2011 - 09:41
Meu filho, você não merece nada
A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada
ELIANE BRUM
 
ELIANE BRUM
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda(Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). 
Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

segunda-feira, julho 18, 2011

FLOR-DE-LÓTUS

Rabindrat Tagore

No dia em que a flor de lótus desabrochou
A minha mente vagava, e eu não a percebi.
Minha cesta estava vazia e a flor ficou esquecida.
Somente agora e novamente, uma tristeza caiu sobre mim.
Acordei do meu sonho sentindo o doce rastro
De um perfume no vento sul.
Essa vaga doçura fez o meu coração doer de saudade.
Pareceu-me ser o sopro ardente no verão, procurando completar-se.
Eu não sabia então que a flor estava tão perto de mim
Que ela era minha, e que essa perfeita doçura
Tinha desabrochado no fundo do meu coração.

sábado, maio 07, 2011

Mãe...

Carlos Wagner 07/05/2011

Mãe, mater, mother, matriz de mim, meu jardim
minha cultura, onde brotei e cresci simples
pelas correrias da infância, pelas travessuras,
pelas agruras e ânsias de ver tudo indo bem...
Mãe, meu porto seguro, ouro outro que me dobrava,
me domava e me amava. 
Projetava em mim um homem menino,
voando por entre as cortinas de nossas histórias
acreditando em mim, mesmo quando intuía falsas falas
fiadas unhas de um gato medroso
olhando o mundo e achando-se poeta, na inocência de um não saber nada.
Mãe, seu dia é uma vida, construído em luta otimista.
Mãe, te quero grande no espírito da vida,
vivida com força de índia guerreira.
A saudade é um poema seu sobre o amor.
A saudade é um pouco de lembrança que entorna de mim,
e em torno de nós fica o olhar de órfãos que se encontram,
certos de que tudo foi bom,
foi muito bom!!!

Carlos Wagner

quinta-feira, abril 14, 2011

Incômodo

Carlos Wagner

Um incômodo, um velho cômodo de minha casa interior, em que adentrei, não sei que dia desses...
Algo foi mexido, dores avivadas, asas levantadas sobre meu ser escondido...
O Inconsciente fica de lá, martelando mensagens que eu não decifro,
frases, cestos de roupas mofadas, sujas, guardadas.
E o armário repleto, nem tenho coragem de vislumbrar nada assim tão detalhadamente,
sim, a mente talhada em pequenas tiras, retalhos de alguma novela "brega" de assuntos grotescos. Ou interessantes amores não vividos, ou vergonhas de besteiras ditas ou mesmo feitas...
Fico, fincado em meu ar de quem não está gostando nada da comida, e, com fome, come e come...
É tristeza, é decepção, é desistência, é afobação...é, sei lá o que resolvo que seja...
Fico quietinho, no fundo do cômodo, do quarto, da sala desse albergue barato.
Mas é certo, é opressão, é o coração inquieto, apertado, e os porquês nada revelam.
Só está claro o incômodo, só está clara a minha insatisfação.


Da alegria, fugaz, repentina, "lampejante", dela não me esqueço,
pois ela, como uma amiga fiel, não me deixa agarrá-la, não me deixa medí-la, nem buscá-la...
mas ela está sempre aqui, comigo. E isso me salva....!


Carlos Wagner

domingo, abril 03, 2011

domingo, março 20, 2011

Rosa


Rosa

Carlos Wagner
20/03/2011
Procuro-te Rosa,
única, perfeita, Rosa das Rosas,
primeiro amor,
desconhecida grandeza, fincada em minha alma,
doendo no coração, por completa ignorância,
por completa inconsciência,
procuro-te rosa.
Da noite dos tempos, procuras a mim,
só chamas e clamas,
e eu não te vejo, não te entendo, não te alimento.
Em meus sonhos, sonho a ti, te vejo, estranha forma de doçura,
estranho perfume que já "fraguei", flagrando em solidão.
Procuro a ti, ó Rosa das Rosas,
opus de um concerto imenso que não compus,
mas que toco sem parar, ampliando os braços desejoso de te tocar.
Ó Rosa consolo,
amiga, gêmea de mim,
procuro-te,
mas sei que já me encontraste.
Estás logo à porta, devo transformar-me, transmutar-me,
devo abrir a casa para entrardes.
Vem viver em mim!!!!

Palestra em Campina Grande

Participação em palestra na Feira "Nova Consciência", em Campina Grande. Semana de carnaval, sem carnaval, pelo menos no sentido tradicional da palavra.
Aqui uma foto da palestra "Os sete estados de Consciência", onde trabalhamos Eu e Maria Dulce, de Campinas. Era dia 04, sábado de carnaval.
Ao fundo, Maria Dulce

terça-feira, março 08, 2011

ÀS MULHERES

Retomo aqui um pequeno poema-homenagem, que postei lá atrás.
A elas,
todas as  mulheres,
sem exceção...

Nesse dia que representa um minúsculo momento de reflexão sobre o que nossa civilização tem feito das relações de gênero.


às Mulheres


De repente uma homenagem....

Carlos Wagner - Abril de 2008



Tive de repente uma súbita visão,

Olhei e vi minha mãe,
Olhei de novo e vi minha filha,
Tornei a olhar e vi uma vizinha.



Encabulado, esfreguei os olhos.

Com olhos fechados, ouvi vozes.
Ouvi minha mulher,
Quis olhar,
Ouvi minha avó,
Sem entender, ouvi uma antiga professora.
Fiquei perplexo a pensar,
Minha memória avivou-se,
Pessoas importantes foram sendo lembradas..
Uma tia, uma amiga,
Uma mendiga que ontem me sorriu
E me ensinou um olhar.
Surgiu também o rosto e o corpo de uma mulher num anúncio de cerveja,
Também uma mãe e vários filhos, com rosto contrito a pedir dignidade.



Abri os olhos, corri para o espelho,

Pude ver um mosaico a me circundar,
Giravam imagens, percebi muitas mulheres,
Vi uma creche, vi uma maternidade,
Vi fábricas onde muitas mulheres teciam ao mesmo tempo em que eu as via amamentando,
Costuravam, urdiam planos e gerações.



Meu coração esquentou, surgiram percepções,

Abriu-se em mim um grande amplexo,
Quis abraçar o mundo, muitas pessoas,
Quis acolher muitos filhos e filhas,
Entendi que as mulheres aconchegam
Acolhem, cuidam, amam,
Engendram seres humanos.
As vi gerando a humanidade (essa mulher maior)
Compreendi que ela preserva as gerações.
Quis saber então por que nos chamamos “Homens”?
Talvez a arrogância masculina manipule e forje um Deus homem,
Masculina cultura.
Então, reforçado em mim mesmo,
Ansiei por um equilíbrio real de gêneros.
Vislumbrei um ente humano mais feliz



Carlos Wagner

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

Férias




Após longa data, adquiro ânimo e venho aqui deixar algumas linhas. Foi longo o tempo da preguiça. Foi longo também o tempo do cuidado em não escrever qualquer bobagem. Mas hoje perdi o medo, ou o cuidado. Não que eu esteja animado demais. Mas é que fico cansado de ver o espaço do Blog sem novidade. E tem muita novidade.
Uma viagem de férias à Bahia, dez dias de desconexão com a máquina maluca da rotina. Fomos, eu, Sara e Mônica para Boipeba e Morro de São Paulo, conhecem ?, ilhas próximas a Salvador, quase paradisíacas, ja transformadas pelo turismo de exploração. Contudo, lugares muito lindos, conjunção de rios e mar, praias reconfortantes, boas de nadar, água morna, e muito sol e passeios por trilhas.
O melhor de tudo foi o passeio em família, muito bom mesmo. Só nós três,  convivendo por dez dias, planejando, rindo, brincando muito, e conhecendo gente nova, culturas, hábitos diversos. Algumas histórias vou contar com mais vagar, circunstâncias interessantes, achados, sortes, e muitos, muitos argentinos em Morro de São Paulo. Chega um momento que dá até canseira de só ouvir castelhano em nossa própria casa. Até os nativos já misturam suas falas com a dos gringos.
Vou falar um pouco mais disso tudo, contar umas histórias, doze intensos dias do começo ao fim. E, uma boa quantia de dinheiro para pagar toda essa aventura, que com certeza, valeu à pena. Não quis nem ficar pensando muito.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

O grito de Pedro

Diante da barbárie humana
numa cena banal de um linchamento de rua,
Um filme, youtube,
que não quero nem ver, apesar de lá postado, 
prostrados ficamos.
Pedro desfere, da Misericórdia, o Grito, doído:

"Vontade de chorar, olho embargado…
ódio, tristeza, decepção, desespero, desapego, incredulidade, desentendimento, surrealidade, dó, desanimo, insatisfação, estômago embrulhado
e vergonha, muita vergonha de ser humano
e o choro já não é mais vontade…"
http://supermacaco.wordpress.com/

Isso somos nós!
Que raça irracional é essa?

Ah, sim, disse o Cristo:
"Raça de víboras, até quando estarei convosco?"

Carlos Wagner

terça-feira, dezembro 07, 2010

Peladas da Pitangui

O texto abaixo é de autoria de Hermélio/Zé.


PELADAS NA PITANGUI


Minha família se mudou pra Sagrada Família, pro 2128 da Rua Pitangui, uma via de terra, naquele trecho, em julho de 1965. E naquela redondeza fizemos amigos pra sempre, com os quais formamos um grupo que jogava bola na rua de calçamento da esquina de cima, a Cel. Júlio Pinto. Uma árvore em frente à casa do Ângelo e do Zezé era o gol de cima, e a outra, em frente à casa do Ênio, do Rui César e da Helaine, era o gol de baixo. Todo mundo jogava descalço, no calçamento e nos passeios. Quem atacava pra cima, atacava pra direita; quem atacava pra baixo, atacava pra esquerda. Na metade do jogo fazia-se a virada.
     Assim era nossa vida esportiva, até que a mãe do Ângelo e do Zezé ganhou o Vinícius, e ela reclamou que a gente gritava muito, não deixava o menino dormir, e proibiu o uso do gol em frente à casa dela. Tivemos que mudar o local da prática de nosso esporte pra outro lugar.
Na Joaquim Felício, esquina de Pitangui,  tinha o campinho da turma da parte baixa da Pitangui, Testa, Piaba, Chiclete de Onça, Danilo, uma turma de gente mais velha que a gente. Não conseguíamos jogar entre eles com tranqüilidade, porque as disputas ali quase sempre envolviam "cocadas" na cabeça dos perdedores. Havia um jogo em que a bola era disputada por todos que estavam na linha, e à medida que iam fazendo gols, cada um saía e esperava que se conhecesse quem seria o último jogador, o que não conseguiria marcar sua saída para a paz e o direito de dar seu “teco” na cabeça de algum coitado. Me lembro de uma tarde em que eu e o Wá, meu irmão, ficamos como a sobra do jogo, e um de nós seria “cocado” pela galera. Mas combinamos tudo direitinho, e conseguimos levar seu final a constantes chutes pra fora, o que não agradou aos que aguardavam conhecer a vítima da hora, mas que nos livrou de ser o “apanhador” do dia. Por coisas assim, nossa turma da Cel. Júlio Pinto resolveu ficar com o lote vago ao lado de minha casa, no outro lado da mesma esquina do campinho da parte baixa. Foi preciso juntarmos todas as nossas forças, enxadas, pás e picaretas pra fazer um campo mais ou menos do tamanho de uma quadra de futebol de salão. Um senhor campinho!
No começo as metas eram duas pedras de cada lado da cancha, mas, com o tempo e a dedicação de elementos especiais do grupo, cada gol passou a ter traves e travessão, serragem ao pé do goleiro e rede de tela de arame, retirada de algum galinheiro. Tela só no gol que dava pra rua Joaquim Felício, já que no de cima, que ficava colado no muro lateral de minha casa, não era preciso colocar rede.
A manutenção do campinho se dava sempre que fosse necessária, e não faltava mão de obra pra isso naquele tempo. As traves chegaram até a ter sua coloração definida, cinza claro e branco, graças à obtenção noturna de latinhas de tinta no Instituto Santo Antônio, que funcionava ao fundo da minha casa, tarefa que foi executada com maestria pelo Ronaldão Qüem-Qüem. O campinho era muito bonito.
A bola utilizada nos jogos, peladas, gol-a-gol e “controles” era guardada no quintal lá de casa. Não interessava de quem era a bola, quem a havia ganho; ela sempre estaria ali, disponível pra quem fosse praticar o ludopédio. Bastava que se gritasse um "manda a bola", pra que minha mãe, ou a Diva, ou um de nós, 4 meninos jogadores, ou uma de minhas 3 irmãs, jogasse a bola pro outro lado, por cima do muro. Quem estivesse jogando a devolveria pro nosso quintal tão logo seu jogo tivesse terminado. E assim era. Durante a semana, de manhã jogavam os que estudavam de tarde; de tarde jogavam os que estudavam de manhã. E nos fins de semana, jogávamos todos.
     Mas, no início de 1970, um trator entrou em nosso campinho, tirou todo o mato de suas laterais e aplainou o terreno, deixando em dois níveis o espaço onde jogávamos bola e onde os pequenos faziam túneis e cabanas. Ainda jogamos umas poucas peladas no lugar aplainado, até que pedreiros, serventes, carpinteiros, máquinas e serras apareceram para construir os 4 edifícios de 3 andares que existem até hoje no local. Onde mais poderíamos jogar nosso futebol diário, a não ser na própria Rua Pitangui?
Nosso campo passou a ser mais estreito, mas podia ser montado ao longo de dois quarteirões, segundo o que fosse necessário ou de interesse da turma. Na parte de cima, da Cel. Júlio Pinto até a Caldeira Brant, o campo ficava em frente ao Bar do Olegário e das casas do Ló, Adão, Davi e Caroço; na de baixo, da Cel. Júlio Pinto até a Joaquim Felício, ficava em frente de minha casa e das do Betão e do Fio, do Silvinho Bougleux e dos meninos que foram morar nos prédios novos, Lincoln, Jefferson, Nado, Baleia, Sérgio Timélo, e outros. O dono da bola continuou sendo qualquer um de nós, e a guarda daquele importante artefato foi mantida como na época de nosso velho estádio, lá em casa.
     Em frente ao 2128 da Pitangui foram realizados os mais vigorosos e retumbantes clássicos peladeiros da Sagrada, nas manhãs, tardes e noites de todos os dias. E, nas tardes de sábado, jogavam conosco alguns dos senhores da rua, como o Titita, motorista do caminhão Ford 350 amarelo no qual alguns de nós fomos ao Mineirão ver o Galo vencer a Seleção Brasileira campeã mundial de 1970, o Seu Ricardo, pai do Cadinho, Marquinho, Betinho, João, Luluca, Soninha e um monte mais de boa gente, um tio desses companheiros, além do Paulista, são-paulino roxo, cunhado de nosso amigo Pipute, e quem mais quisesse jogar com a gente. Eram figuras marcantes em nossas peladas, num tempo em que não havia tanto carro subindo e descendo pelo nosso campo.
Mas, de vez em quando, vinha a Dona do Aero Willys vermelho, que implicava conosco, reclamava do barulho que fazíamos e prometia que iria chamar a polícia pra nós. A bola continuava a rolar, que hora fosse, mas sabendo do que poderia vir a acontecer, colocávamos dois eminentes olheiros do time de fora no fim de cada quarteirão, observando se a viatura policial já estava chegando. E muitas vezes ela vinha mesmo, e os bravos olheiros gritavam "os hôme", e a bola era guardada atrás do muro lá de casa, ficando todos nós sentados no muro e no meio-fio, fingindo estar contando histórias da carochinha um pro outro. Todo mundo muito suado, porque contar história, sentado no muro e no meio-fio, é algo que dá muito calor na gente.
"Os hôme" passavam, uma, duas, três vezes pelo nosso campo, mas iam embora sem nos tomar a bola, objeto precioso, e a pelada voltava a acontecer, após vibrantes gritos, assobios e palmas. Tínhamos vencido mais uma batalha. E, em agradecimento à Dona do Aero Willys vermelho, cada vez que ela descia a rua com seu veículo, corríamos à frente dele, gritando, fingindo estarmos com medo e tentando subir em muros e postes para fugir dela, até que ela parasse na esquina da Cel. Júlio Pinto com Pitangui e saísse do carro dizendo "seus mentecaptos"! Ninguém sabia direito o que era aquilo, mas ouvíamos seu xingamento como elogio e prova de orgulho para todos. Virou tradição na Pitangui: a qualquer hora em que o carro vermelho aparecia na rua, tinha gente que saía correndo à frente dele, fugindo assustado da motorista que de vez em quando chamava a polícia pra gente. Era tudo muito engraçado e divertido.
Outro tradicional motorista que chamava nossa atenção diariamente, e parava nossas peladas, era aquele da Rural amarela e de teto branco, um tio do Gilberto Jucão. Certo dia, durante um jogo interrompido para que seu tio passasse, o Gilberto pediu-lhe a bênção, ao que ele respondeu com um “bençõe” e dois toques de buzina. Pronto, estava formada mais uma grande família ao redor do bar do Olegário. Todos nós, meninos grandes e pequenos, passamos a pedir, gritando, a “bença”, toda vez que nosso “tio” passava por nós, estivéssemos ou não jogando bola. Havia gente de todo tamanho que saía correndo de dentro de casa, pra se unir ao coro dos “bença”, e fazer nosso “tio” descer aqueles dois quarteirões da Pitangui respondendo a todos com 2 buzinadas, um grande sorriso e um aceno de mão. Nossa Família Sagrada era muito unida.
Nós tínhamos outro vizinho que se revelou também nosso amigo. Ele morava no mesmo prédio de nossa desafiante do Willys, no andar de baixo, o Seu Souza, simpática pessoa que gostava de plantas e não implicava conosco. Me lembro bem que ele nem xingou a gente na noite clara e quente em que, por volta das 11 horas, propus a realização de uma pelada, imediatamente aceita pela turma noturna. Tudo corria bem, sem reclamações e sem visita da polícia, até mesmo quando tivemos que encerrar o jogo depois que um beque da roça enfiou o bico na bola e a jogou em cima de um monte de garrafas guardadas no quintal do Seu Souza. A barulhada de vidro batendo e se quebrando foi o apito final de nosso evento noturno, que terminou de repente, deixando a rua vazia. Mas a bola nos foi devolvida no dia seguinte, sem bronca e sem estar rasgada. Seu Souza era um cara muito legal!
Quando não havia número de jogadores para formação de dois times pra pelada, saíamos para o peru (“peru, entrei”, “entrei”, “entrei”- o último a falar se tornava o cara do meio da roda) ou o "controle", jogo esse de habilidade com 1 no gol e 3 na linha, que só podiam chutar ao gol depois que a bola tivesse passado pelos 3, no alto, sem tocar no chão. Pra se chutar sem os 3 toques, só se a bola viesse de cruzamento. Quem fazia isto gritava, “cruzo”. Se acontecesse um “cruzo”, o nome do nosso cruzamento, valia o gol só de 2 toques. Após 3 gols, o goleiro era trocado. Um chute pra fora de um dos 3 atacantes, fazia o goleiro vir pra linha. Coitado de quem estivesse no gol com uma linha de trio habilidoso. A chance de deixar de ser o guarda-metas do “controle” era muito pequena, e a troca de goleiros, muito rápida.
O gol preferido para a prática do “controle” era o portão azul da casa do Seu Geraldo. Coitado do Seu Geraldo e de sua família, açoitados diariamente com um barulho infernal de gols e discussões acaloradas dos “controladores”. Coitado do portão, objeto de metal que tinha que ser consertado de tempos em tempos, pra recolocar seus parafusos no lugar, estragado por tantos gols marcados. Reclamações e pedidos eram emitidos por nosso ótimo vizinho, mas quem poderia por de lado um gol com altura e largura ideais, tão bem feitas para a prática do "controle"?
Pra se saber se o Seu Geraldo estava ou não em casa era fácil: se seu carro não estivesse em frente ao 2127 da Pitangui, o jogo seria realizado. Se lá estivesse o veículo verde, tínhamos que passar pra outro jogo, em outro lugar. E se ele tivesse saído, sabíamos quando estava chegando ao ouvir o ronco em 2 tempos de seu DKW-Belcar subindo a Cel. Júlio Pinto. Era hora do "controle" mudar rapidamente para um "peru" no meio da rua.
Nesse mesmo portão do 2127 aconteceu uma das cenas mais espetaculares do nosso estádio da Pitangui. Alguém, no gol, desafiava artilheiros que, no passeio do outro lado da rua, debaixo da árvore grande que ficava no canto de cima de minha casa, chutavam uma pesada bola de borracha “Dente de Leite”, a preferida do nosso grupo, com todo vigor, um atrás do outro, procurando marcar seu gol. Tudo ia bem e os gols barulhentos iam acontecendo, até que o craque Roberto Dias, com seu tradicional tênis Rainha preto, prepara o chute, o executa e acerta. Acerta a barriga enorme da empregada de Seu Geraldo, grávida, que estava assistindo ao jogo da varanda, acima do portão azul. Todos assustados, vimos a moça por a mão na barriga e entrar em casa. Mas nos tranqüilizamos depois, ao saber que nada de sério havia acontecido com ela ou seu filhinho. Apesar do susto, a moça, o Roberto e o bebê ficaram bem. Uma semana depois soubemos que ela tinha dado à luz um garoto que, certamente, se tornou um grande zagueiro cabeceador, ou alguém que detesta futebol.
Mas os apelos do bom Seu Geraldo foram ouvidos, e o gol do "controle" passou a ser no muro do prédio ao lado de minha casa. Sua marca ainda está ali, até hoje, fim de 2010. O ruim desse novo alvo era que, de vez em quando, a bola caía no estacionamento do prédio, ou batia na janela do português do 2º andar, felizmente e incrivelmente, sem quebrá-la, nos fazendo ficar livres do vizinho briguento e reclamão. Com a bola do outro lado do muro alto, tínhamos que arrumar alguém pra fazer o serviço de gandula. O bom era que o edifício onde moravam muitos dos novos boleiros acrescidos à nossa turma não tinha portão, interfone ou cadeado, como todo prédio tem hoje em dia. A vida futebolística da moçada era melhor e bem mais fácil naqueles tempos da década de 1970.
     Seguiu-se a vida, eu cresci, cresceram os amigos, mudaram muitos de vida, de turma, de bairro, de cidade. A Pitangui passou a receber mais carros, o bar do Olegário foi pra esquina da Caldeira Brant com Pitangui, a árvore grande de minha casa teve que ser cortada, após causar estragos na rede de esgoto, os muros da rua se tornaram altos, amigos e parentes morreram, as peladas acabaram. Mas, de cada chute, cada grito, cada briga, cada risada, cada fuga, cada corrida maluca do Betão e do Rogério à frente dos carros, pra ver quem seria o último a sair da frente deles, cada pedacinho desses serviu para construir uma história que está marcada com uma sinceridade que demonstra que amizade se faz nas pequenas coisas, nos pequenos momentos que, quando acontecem em nossa infância e juventude, formam nosso caráter, nossa personalidade. Me sinto feliz por ter jogado pelada na Pitangui com a Turma da Pitangui.
Nossos pais não tiveram que pagar por escolinhas de futebol para nós. Muito bons aqueles tempos!

Todos novos em Capetinga

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Olha aí o pessoal lá de antes...

O lobo da estepe - Hermann Hesse

  • O lobo da estepe define minha personalidade de buscador

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