dom, 30/03/2014 - 11:23 - Atualizado em 30/03/2014 - 21:18
“Hoje sinto a mesma dor, talvez menos que você, e... E depois do que eu disser, me perdoa se quiser, mas... Finge que está tudo bem. Minta pra mim pra que eu viva meu sonho feliz assim”.
São extratos da doída e bela canção de Jorge Aragão – “Minta meu sonho”.
É nesse campo, o do autoengano, que devemos entender o editorial de domingo, 30/03/2014, véspera dos 50 anos do golpe de 1964. Aliás, é esse o título seco do editorial
“1964”.
Soa acaciano dizer que só pode se fazer afirmações sobre o que ocorreu. Tais afirmações poderiam ser verdadeiras ou falsas, mas se apoiariam em fatos. Sobre o que não aconteceu, porém, pode se criar suposições, teorias até bem elaboradas ou simples ilusões. Pode se criar mitos. É desse material onírico que a Folha de São Paulo tenta se valer para relativizar a ruptura democrática de 1964, o golpe que derrubou um presidente democraticamente eleito, e os crimes lesa-humanidade que se seguiram a ela, com a aparente pretensão de relativizar sua própria participação em tais atos.
“Aquela foi uma era de feroz confronto entre dois modelos de sociedade --o socialismo revolucionário e a economia de mercado. Polarizadas, as forças engajadas em cada lado sabotavam as fórmulas intermediárias e a própria confiança na solução pacífica das divergências, essencial à democracia representativa.” Diz o editorial.
Não, tal qual como hoje, a esquerda no Brasil havia chegado ao poder por vias democráticas, não revolucionarias. Tal qual como hoje, tímidas mudanças de quebra do monopólio da plutocracia sobre as riquezas da nação ensejaram uma reação autoritária e golpista como forma de manutenção do establishment conservador. Tal qual como hoje, a Folha estava alinhada a essas forças reacionárias.
“Logo após 1964, quando a ditadura ainda se continha em certas balizas, grupos militarizados desencadearam uma luta armada dedicada a instalar, precisamente como eram acusados pelos adversários, uma ditadura comunista no país”.
Mais uma vez a impostura de dar o status de “forças beligerantes” para um pequeno grupo de resistentes radicalizados, sem a menor condição prática de se opor a um golpe patrocinado pela burguesia, empresariado, Igreja, grande imprensa, Forças Armadas e pelos Estados Unidos. Só o povo não estava presente, nem foi convidado. Bastaria a Folha ter lido “A ditadura envergonhada” e “A ditadura escancarada”, dois livros de uma série de seu jornalista Elio Gaspari, para perceber a impropriedade de tal argumento, dada a imensa disparidade de recursos. Elio nota que os guerrilheiros do Araguaia, movimento posterior ao de Caparaó, que parece ser o citado pela Folha, não possuíam sequer uma “arma longa”, revólveres tão somente. Quase flores enfrentando canhões. Caparaó mesmo não passava de algo em torno de vinte homens.
Como então afirmar “As responsabilidades pela espiral de violência se distribuem, assim, pelos dois extremos,...”?
Igualmente é a defesa que a Folha faz a seguir dos êxitos econômicos da ditadura:
“Em 20 anos, a economia cresceu três vezes e meia. O produto nacional per capita mais que dobrou. A infraestrutura de transportes e comunicações se ampliou e se modernizou. A inflação, na maior parte do tempo, manteve-se baixa”.
Ato falho, pois fez me lembrar do filme “Hitler”, propaganda da própria Folha que, referindo-se ao ditador nazista, começava por:
“Este homem pegou uma nação destruída, recuperou sua economia e devolveu orgulho ao seu povo. Em seus quatro primeiros anos de governo o número de desempregados caiu de seis milhões para 900 mil pessoas. Este homem fez o PIB crescer 102% e a renda per capta dobrar... e reduziu uma hiperinflação a, no máximo, 25% ao ano”.
Para concluir: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”.
Até porque tal "exito" nos custou "duas décadas perdidas".
Por que a Folha pisaria o terreno pantanoso da revisão histórica? A resposta é freudiana. A Folha tenta rever a sua própria história:
“Às vezes se cobra, desta Folha, ter apoiado a ditadura durante a primeira metade de sua vigência, tornando-se um dos veículos mais críticos na metade seguinte. Não há dúvida de que, aos olhos de hoje, aquele apoio foi um erro”.
Sem dúvida, o julgamento moral de um ato deve levar em conta o lugar e o tempo onde o ato aconteceu. Ocorre que dessa atenuante a Folha não pode se socorrer. Já na década de 60, um golpe contra a democracia era algo inaceitável e já era crime contra a humanidade fazer da“tortura uma política clandestina de Estado”. Era isso que a Folha apoiava, na época. Com todo o conhecimento de quem, mais do que apoio ideológico, é acusada de prestar apoio material, na forma de empréstimos de viaturas, aos torturadores para o transporte dissimulado de suas vítimas. E acusada ainda do silêncio, quando não da propaganda, cúmplice e conveniente sobre tais crimes.
Portanto, soa como uma reação de defesa psicológica ao conflito entre os fatos e a imagem que a Folha quer cultivar de si própria, o seguinte parágrafo do editorial:
“É fácil, até pusilânime, porém, condenar agora os responsáveis pelas opções daqueles tempos, exercidas em condições tão mais adversas e angustiosas que as atuais. Agiram como lhes pareceu melhor ou inevitável naquelas circunstâncias”.
Não, não são os covardes que hoje condenam a Folha por “agir como lhe pareceu melhor naquela circunstância”, são os que sobreviveram. São, indiretamente, as suas vítimas.
E isso em momento algum deve lhes ser fácil.
Quanto à Folha, parece que ainda não reuniu forças para fazer o que propõem aos outros neste seu editorial, ou seja, o “longo e doloroso aprendizado para todos os que atuam no espaço público, até atingirem a atual maturidade no respeito comum às regras e na renúncia à violência como forma de lutar por ideias”.
Que não continue assim.