Meia-Noite no Planeta Quarentena: Dylan ataca de novo
Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Que timing espetacular. Como um tiro ricocheteando nas Portas do Céu, enquanto uma pandemia viral faz estragos ferozes e o Planeta Quarentena é o novo normal, Bob Dylan produziu uma estarrecedora obra-prima de 17 minutos, dissecando o assassinato de JFK, ocorrido em 22 de novembro de 1963, lançando-a à meia-noite, horário da Costa Leste dos Estados Unidos.
Para a geração do baby-boom, para não mencionar os dylanólogos obsessivos, esse é o sucker punch supremo. Incontáveis olhos mergulharão em piscinas para revisitar todas as lembranças que redemoinham em torno "do dia em que estouraram os miolos do rei / Milhares assistiam, ninguém viu nada" (the day they blew out the brains of the king/ Thousands were watching, no one saw a thing). Mas isso não é tudo: o Dylanmobile nos leva num tour mágico e misterioso dos anos 60 e 70, junto com os Beatles, a Era de Aquário e o Tommy, do The Who.
Se há algum artefato cultural capaz de disparar um poderoso solavanco por toda uma América perplexa, que tenta se haver com um Beco da Desolação distópico, aqui está ele, obra do verdadeiro e incontestado Excepcionalista americano. Os tempos estão mudando. Sim, estão mesmo.
Há tantas jóias nas letras de Dylan que seria necessário um tratado para rastrear o turbilhão de música, literatura, referências cinematográficas e de miscelânea Americana entrelaçados em cada verso.
Agência do Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos
Trata-se, essencialmente, de um mantra encantatório com um arranjo para piano, percussão esparsa e violino. Temos dois narradores: um Kennedy moribundo ("No banco de trás, ao lado de minha mulher / Rumando direto para o além / Tombo para a esquerda, minha cabeça em seu colo / Ó, Deus, me armaram uma cilada (Ridin’ in the backseat next to my wife / Headin’ straight on in to the afterlife / I’m leanin’ to the left, got my head in her lap / Oh Lord, I’ve been led into some kind of a trap") e o próprio Dylan.
Ou isso pode ser lido como Dylan no papel do duplo de Kennedy, com intervenções ocasionais, como as dos supostos assassinos ("Então estouraram seus miolos ainda no carro / Abatido como um cão em plena luz do dia / Questão de timing, e o timing foi preciso / Você tem dívidas a pagar, e viemos cobrar / Vamos matar você com ódio e sem o menor respeito / Vamos zombar de você, e chocar você e rir na sua cara / Já temos alguém para pôr no seu lugar" ("Then they blew off his head while he was still in the car / Shot down like a dog in broad daylight / Was a matter of timin’ and the timin’ was right / You got unpaid debts we’ve come to collect / We gonna kill you with hatred, without any respect / We’ll mock you and shock you and we’ll grin in your face / We’ve already got someone here to take your place").
A pérola no coração do mantra é nada menos que apocalíptica: "Mataram ele uma vez, mataram ele duas vezes/ Mataram como num sacrifício humano / No dia em que mataram ele alguém me disse: 'Filho, a era do Anticristo está só começando'" ("They killed him once and they killed him twice / Killed him like a human sacrifice / The day that they killed him someone said to me, / ‘Son, The Age of the Antichrist has just only begun'").
Qualquer palavra adicional para definir a canção seria desnecessária. Onde quer que você esteja no Planeta Quarentena, recoste-se, entre em modo trancado em casa/socialmente distanciado, ligue o som, sintonize e viaje no tempo. Haverá sangue nas faixas.
Em
2007, quando a Banda brasileira "Los Hermanos" acabou, da qual sou ainda muito fã, o Pedro
Maia, meu sobrinho, me perguntou: "E aí, tá muito triste com o término do Los
Hermanos? Cê tá de luto?
Respondi: Pra quem já viu e viveu o fim dos Beatles, isso é fichinha!
Mas, dá para fazer uma reflexão mais aprofundada sobre essa coisa de
"perder" ídolos ou coisas importantes. Fui longe e pensei nos
momentos em que pude sentir essa coisa da perda, da morte, do fim de namoros,
da despedida de quem vai para longe.
É claro que existem dores mais fortes do que
outras, principalmente aquelas ligadas a perdas irreversíveis, como a morte por
exemplo. E no meu caso, e de muitos de nós, particularmente, a partida súbita do Rogério, meu
irmão, em 1983. Foi uma das primeiras de todas na minha casa. É muito dura a experiência da
morte. Porém, vivemos todo os dias a morte de alguma forma, na descontinuidade das
coisas. Nós queremos que muitas coisas durem, principalmente aquelas que são
boas, simpáticas e prazerosas. Talvez a nossa incapacidade de viver o presente
nos leve a esse tipo de desencontro. Estamos de tal forma ligados ao passado, à
experiência boa ou ruim, que deixamos de verificar com plenitude as coisas do
"agora". Ficamos, quase sempre, ou querendo preservar o prazer, ou buscando
evitar a dor já vivida e conhecida. Vivemos, então, agora, ligados no passado e
projetando o futuro. Abdicamos do "agora". É claro que o que foi bom, seria bom viver de novo. Mas para isso
precisaríamos estar nas mesmas condições em que estávamos quando da vivência daquela
experiência. Como isso é impossível, tudo será sempre novo, seremos sempre
outros, e as experiências nunca se repetirão. Deveríamos, portanto, estar prontos para o sempre novo, mesmo que eles se
referissem a coisas do passado. Uma música, por exemplo, a cada momento que a
escutamos, obtemos emoções novas, percepções novas, como se a lente que nos
permite enxergar, sempre providenciasse novos olhares, porque assim o é.
Por
isso, não importa se os Beatles acabaram, o Led Zeppelin, os Novos Baianos e, é
claro, o Los Hermanos mesmo! O que importa é que a obra desses artistas está aí
para apreciarmos, e já não pertencem a eles, e podemos ouvi-las sempre, ou não!
Finalmente,
perceber o fluxo das coisas é perceber a morte e a vida, a todo momento. Um
leite que entorna, um ónibus que perdemos, um objeto que alguém rouba ou que perdemos, uma
derrota de um time amado. Uma criança que nasce, um olhar de flerte, uma
amizade que se inicia, uma chuva que refresca. Lá e cá, há sempre fluxo,
entradas e saídas.
Quero
então, a propósito, encerrar este texto com uma parte de uma letra de uma música do Marcelo
Camelo, Los Hermanos, que diz:
"Quem
acha que perder é ser menor na vida, quem sempre quer vitória, esquece a gloria
de chorar", e também do Rodrigo Amarante,LH, "então, tentar prever, serviu pra eu
me enganar". Também Lulu Santos e Nelson Mota, "nada do que foi,
será, do jeito que já foi um dia", e é claro, George Harrison, com a
explícita "All things must pass” , toda ela.
"Fecho
com Mário Quintana, "Todas as coisas passarão, Eu passarinho”!!
Novos velhos tempos, novos velhos virus. A alma pequena dos homens mais uma vez olha perplexa e pergunta angustiada: e agora, pra onde ir, por onde escapar? E o velho Sísifo mais uma vez carrega sua bola de pedra, e inevitável ele voltará ao ponto de partida. E ele não olha para outro objetivo a não ser acreditar que essa pedra um dia ficará presa no topo, e a ilusão de monte, topo e pedra, tempo e esforço o cega completamente. É assim que somos, cegados pelas vizeiras de nossos cabrestros, só enxergamos na reta de nossos objetivos egóicos. E quando lhamos para nossas energias e capacidades, às vezes cremos estar fortes, às vezes sabemo-nos muito fracos, mas pensamos sempre como um robô: É isso memso, a vida é assim! Vou me esforçar mais na próxima tarefa, na próxima subida, na próxima promessa, nas próximas resoluções. Porém, a condição de Sísifo nunca é minimamente questionada, seguimos com a culpa de sermos preguiçosos e indolentes, ou iludidos de nossas forças de vontade .Mas, como . Sísifo é um Deus, ou um mito com poder, somos orgulhosos de nossa condião de seres superiores nessa mata de animais terrenos. Somos o Rei da selva, inóspita e desértica da vida humana.Pobres diabos. E mais uma crise nos atola de preocuação e angústia. E nossa prisão torturante forjada a tempo e espaço, e três em mim imensões, cujas medidas relativas se transformam em nossas medidas de consciência, de Eus de nós mesmos, de medo e de autoestima fragilizada.
Difícil iniciar esta carta lhe perguntando se você está bem ou desejando que essas palavras lhe encontrem bem. Difícil porque sei que, por mais forte e resistente que você seja às injustiças e às dores que lhe foram infligidas ao longo desses anos, nada pode estar bem ou bom na situação em que você se encontra. Sua altivez e dignidade quando em público não mudam o fato de que você é um senhor idoso, com mais de 70 anos, que não oferece qualquer risco à sociedade brasileira, logo, de que sua prisão contraria todos os princípios de justiça e empatia, mesmo que ela estivesse baseada em provas e num processo condizente com um estado democrático de direito, coisa que sabemos que não está.
Para qualquer pessoa de bom senso, no Brasil e no mundo (e eu tenho corrido o mundo, meu querido), não faz qualquer sentido você estar preso – sem provas e por sentenças escancaradamente fraudulentas, até mesmo mal escritas e com trechos copiados de outras, dadas por juízes e juízas que agem como políticos vingativos, desonestos intelectualmente e ressentidos – enquanto notórios corruptos do mundo empresarial, do mercado financeiro, dos meios de comunicação e de partidos como MDB, DEM, PP, PSL (ratos menores, mas não menos perigosos) e PSDB gozam de liberdade e dos frutos da pilhagem; e enquanto um sujeito burro, comprovadamente odioso em relação às minorias sexuais e étnicas e com ligações suspeitíssimas com organizações criminosas paramilitares que praticam execuções extrajudiciais em troca de dinheiro desgoverna o país, revelando ao mundo o que há de pior no caráter nacional.
Escrevo-lhe esta carta, meu velho, porque amanhã essa sua prisão injusta faz aniversário. Há um ano você é um preso político, retirado fisicamente da cena pública sob acusações vindas de uma operação da Justiça e Ministério Público federais de Curitiba que, hoje estamos sabendo, não tinha apenas o propósito de criminalizar o PT e as esquerdas em favor da extrema direita fundamentalista cristã e miliciana, mas sobretudo o de se apropriar privadamente de recursos públicos (bilhões de reais!), ou seja, o de assaltar os cofres públicos, mas com os requintes de uma organização mafiosa, tudo sob a narrativa mentirosa de "combate à corrupção" – devidamente sustentada e reproduzida por uma imprensa historicamente antipetista – que tanto agrada à parte da classe média estúpida e alienada, porém arrogante, amedrontada, ressentida e invejosa.
Escrevo-lhe esta carta do exílio que me impus para escapar da morte violenta que me rondava aí. Sabe, Lula – e seguramente você deve saber, porque tem amigos que foram exilados durante os anos terríveis da ditadura civil-militar no Brasil – o exílio não é nada fácil. É uma "longa insônia", como já disse o escritor francês Victor Hugo. Eu direi que é um "não-lugar", para citar outro francês, o filósofo Marc Augé. No exílio, estamos permanentemente a caminho, numa estrada sem retorno à vista e cujo fim não se pode vislumbrar. Trata-se de um salto interminável de um lado para outro a que não se chega, e com o abismo a nos espreitar baixo. O exílio é um além, meu amigo.
Contudo, o exílio é melhor que a prisão. Esse além ainda pode ser uma vida em liberdade espacial. O salto pode ser sentido e visto como um vôo. Pode-se aproveitar a paisagem do interminável caminho que ele é. E é esse o sentido que tenho dado ou tentado dar ao meu exílio, em nome dos que aí ficaram e estão ameaçados. Em cada espaço que se abre para mim na Europa, nos EUA, no Canadá e em países da América Latina, eu tenho apontado para a nuvem de gafanhotos que paira sobre – e já devora – a nossa democracia ainda em broto; tenho denunciado sua prisão arbitrária e gritado "Lula livre!", colando adesivos em postes, e tenho tornado presente a memória de nossa saudosa Marielle Franco, exigindo que se descubra quem mandou matá-la.
Muitos têm me acompanhado, Lula. Você não está só! E o propósito dessa carta é o de lhe dizer isso. Ainda que todos no Brasil e no mundo o esqueçam – algo impossível, porque você já é história e vive na dignidade de cada pobre, preto, preta, favelado, periférico, gay, lésbica, travesti, evangélico, católico, judeu, umbandista, indígena, camponês, operário e trabalhador informal conquistada durante e por causa de seus governos, mesmo que estes não tenham consciência e até lhe sejam ingratos, insultando-o nas redes sociais – ainda que isso aconteça, eu estarei com você, não importa o preço que eu tenha que pagar por isso. Não tenho medo da impopularidade. E a gratidão e a bondade são algumas das minhas virtudes, entre meus muitos defeitos.
Desde 1989, eu o vejo como o pai que meu pai poderia ter sido. Seguramente você teria, a princípio, algum problema com minha homossexualidade, com o pai meu teve, mas, certamente, superaria isso e me amaria como sempre e me protegeria dos horrores da homofobia. De alguma maneira, Lula, eu segui seus passos a partir de então. E desde que meu pai se foi deste mundo, em 2001, você é a referência paterna em minha vida.
Outro dia, andando sozinho pela madrugada fria da Berlim iluminada e quase vazia, com os fones de ouvido e o iMusic (Você sabe o que é isso? É uma espécie de caixa de músicas do celular) em modo aleatório, chegou-me uma canção de Roberto Carlos cujos versos me tocam profundamente. Porque me falam de meu pai e mais ainda de você, meu querido.
"Esses seus cabelos brancos bonitos; esse olhar cansado profundo, me dizendo coisas num grito; me ensinando tanto do mundo; e esses passos lentos de agora, caminhando sempre comigo, já correram tanto na vida, meu querido, meu velho, meu amigo… Sua vida cheia de histórias e essas rugas marcadas pelo tempo, lembranças de antigas vitórias ou lágrimas choradas ao vento; sua voz macia me acalma e me diz muito mais do que eu digo, me calando fundo na alma, meu querido, meu velho, meu amigo! Seu passado vive presente nas experiências contidas nesse coração consciente da beleza das coisas da vida. Seu sorriso franco me anima; seu conselho certo me ensina. Beijo suas mãos e lhe digo, meu querido, meu velho, meu amigo: tudo isso é pouco diante do que sinto".
Eu quero é te ver livre, guerreiro.
Te amo.
Jean Wyllys
Pergunta: O senhor nega a religião, Deus e a imortalidade. Como é que a humanidade pode tornar-se mais perfeita, e portanto mais feliz, sem acreditar nestas coisas fundamentais?
Krishnamurti: Porque para vocês é apenas uma crença em Deus, na imortalidade, porque simplesmente acreditam nestas coisas, é que há tanta miséria, sofrimento e exploração. Só podem descobrir se existe a verdade, a imortalidade, na plenitude da própria ação, não através de uma qualquer crença, não através da asserção autoritária de outro. A realidade oculta-se na plenitude da própria acção.
Ora para a maioria das pessoas, a religião, Deus e a imortalidade são simples meios de fuga. A religião apenas ajudou o homem a fugir do conflito, do sofrimento da vida, e por isso da sua compreensão. Quando estão em conflito com a vida, com os seus problemas de sexo, exploração, ciúme, crueldade, etc., como fundamentalmente não desejam compreendê-los – porque compreender exige ação, ação inteligente – e como não estão dispostos a fazer um esforço, inconscientemente tentam fugir para aqueles ideais, valores, crenças que lhes foram passados. Assim a imortalidade, Deus e a religião tornaram-se simplesmente refúgios para uma mente que está em conflito.
Para mim, tanto o crente como o descrente em Deus e na imortalidade estão errados, porque a mente não pode abranger a realidade até que esteja completamente livre de ilusões. Só então podem afirmar, não acreditar ou negar, a realidade de Deus e da imortalidade. Quando a mente está totalmente livre dos impedimentos e das limitações criadas através da auto-protecção, quando está aberta, integralmente nua, vulnerável na compreensão da causa da ilusão auto-gerada, só então todas as crenças desaparecem, cedendo espaço à realidade.
(Krishnamurti - O que é a Ação Correta? - Palestra em São Paulo - 24 de Abril de 1935)
Justiça
e injustiça, quem decide, o quê, quando, quanto?
Dois pólos, elementos de uma mesma natureza “dialética”, como aprendemos em
Heráclito, pré Sócrates, dialética sem fim. Pólos duma mesma moeda.
Dominador/dominado/dominador...
Vencedores e vencidos, sempre trocando de papéis... sempre trocando de signos,
de posições e vetores de força.
Esse
mundo, esse campo de vida selvagem, não é mesmo pra ser um “céu”, nem nunca
será! O Bem e o mal são valores de uma balança ininterrupta em movimento de
trocas de pesos e contrapesos. A humanidade não pode ser “feliz” aqui, nesse
campo de provas do tempo e da temporalidade. A duração e a permanência das
coisas são sempre corroídas num incessante agregar e desagregar, corroída a
eternidade, corroída a utopia dos movimentos que lutam por permanência,
religiosos, políticos, filosóficos. Somos espíritos/almas condenados, como
Sisifo da mitologia, a viver a experiência da materialidade, dura feito pedra.
Há momentos de "bonança" seguidos de momentos tempestuosos nesse
nosso hades, de guerras e lutas e também de paz temporária.
Claro que
os homens de bem, num sentido relativo, desejam mudar o mundo e sonham com uma
sociedade onde uma “felicidade” possa ser possível, entendendo que podem
encontrar um mecanismo de evolução em linha reta, mas, há sempre conflito aqui,
há sempre atrito, há sempre vencedores e vencidos, há sempre os “poderosos” e
os “fragilizados”, e o sofrimento parece fazer parte contínua desse nosso modo
de sermos seres conscientes, animais "racionais" bem irracionais,
irascíveis, egoístas e ambiciosos. Nossa racionalidade cabe dentro de uma perspectiva
pessoal. Nunca houve paz duradoura entre nós humanos. Sempre guerras e
conflitos, e sabemos que precisamos mediar os nossos desejos e apetites para
não sairmos pisando uns nos outros, contrários aos nossos interesses diretos.
Mas, é
preciso sim que o mundo seja mais "civilizado", mesmo que essa
civilidade cause, como apontou Freud, um mal-estar constante ao nosso “animal”
bravio interior, déspota, tirânico. Sim, é preciso que haja regramentos e
pactos sociais mínimos, acordos entre os seres da civilização humana. Por isso
o caminho mais adequado deve ser a tão frágil “democracia”, mesmo que
imperfeita. Ela deve ser vista como o acordo civil básico pra que possamos
todos ter lugar ao sol.
É preciso
que haja regras, não pode deixar de haver um esforço para que sejamos
minimamente mais igualitários.
Porém,
tudo sempre depende do quanto somos honestos conosco mesmos e entre nós. Quando
a honestidade se afasta das consciências, o que resta é o “meu”, o “nosso”,
nepotismos, os pesos e medidas desiguais, os casuísmos, a proteção irracional
dos nossos interesses, o olho enviesado, torto para o lado, para não
enxergarmos os outros e suas carências, semelhantes às nossas, para não ver que
as coisas estão esquisitas e desequilibradas.
O nosso
"EU", em seu ponto de vista limitado, sempre será egoísta e sempre
verá o mundo através de sua própria lente, sua própria tribo, sua própria
gente, seus interesses imediatos. A igualdade de direitos, a dor dos outros, a
doença dos outros, as necessidades dos outros, precisam ser as também nossas
próprias. Buscar olhar o mundo através do olhar do outro assenta bases para
sermos mais "felizes", mesmo que seja passageira a nossa alegria. Uma
utopia, eu acho!
Sim, é
utópico pensar que pode ser diferente a vida humana onde milhões de seres sofrem
necessidades e poucos, bem poucos, têm poder e recursos. É utópica a nossa
indignação sobre o fato de querer algo contrário, pois como pode haver
tranqüilidade entre os povos, entre as pessoas, entre os países, quando não há
uma real fraternidade?
Diferentemente,
a utopia de uma vida realmente feliz, esse “sonho de adão”, como definiu bem
Gilberto Gil na música “Oriente”, e que também faz referência em outra canção,
“Raça Humana”, sim, esse pensar Utópico deve fazer parte de um combustível
fundamental de COSCIÊNCIA e REFLEXÃO para que possamos abrir espaço em nossas
mentes e corações e para que também possamos, um dia, realmente ser chamados de
Seres Humanos no sentido de Animais verdadeiramente Racionais!
Muitos dizem, "tudo o que você precisa é o Amor"...
Todos querem o Amor,
nas sessões, nos consultórios, nos motéis, nas igrejas, nas baladas, e nas caridades honestas....
Ah, o Amor,
Cantado pelos poetas, desejado por todos,
implicando bons e maus...
mas...
Como defini-lo?
É sentimento?
Bem-querer,
gostar, desejar, simpatizar, agradar?
Amamos?
Eu Amo?
Não sei, certamente...!
Pode ser,
porém, falta-me ainda a sabedoria! Isso Eu sei!
Amo, o indefinido infinito impulso em mim,
"aquilo", o Tao, o mais profundo transcendente em mim,
aquele ponto, faísca,
de quê e de onde "nada sei",
aquela partícula absolutamente impessoal em mim,
absoluta e resoluta luta em mim contra o medíocre ocre e "Ogro" eu,
o "sentindo-se" existir em avanço lento no inesperado "Bem" maior de tudo,
mesmo que a sofrer revezes importantes, por ignorância pura.
Amo o Amor daquele Amor maior que me chama lá do nada ser,
do nada prender, do nada reter.
Amo a figura calada em mim,
Esfinge, semblante da "Rosa setupla",
chacra aberto em chagas, no coração,
a flor de que nada sei até então,
até o hoje desconhecido mim mesmo,
aguerrido e lutador,
na inconstância da minha identidade mais do que indefinida, apesar da certeza de que ela é sombreada por uma sabedoria de fundo.
Amo,
e temo não poder amar tanto que não seja capaz de mergulhar na harmonia das sete centenas de universos íntimos de alegrias certamente "não-egocêntricas",
não pessoalmente revestidas de prazeres de um "eu" burguês que sou,
desejoso de riquezas, honrarias e poderes...
Amo,
e devo aprender a não desejar possuir o objeto desse Amor,
pelo impossível dessa possibilidade,
pelo anacrônico e paradoxal desejo que nasce em mim de querer abarcar esse Amor não sensato, não pensado.
Somente posso buscar enxergar além das barreiras e limites dessa não-forma que é o Amor,
Chama que me chama, me grita,
fogo perigoso,
que queima os incautos incontidos ignaros,
chamuscados pelo que pensam, erradamente, seja o Amor uma meleca sentimental de místicas percepções prazerosas, tristes e/ou autocomplacente...
Sim, entendo,
o Amor nada tem de um "gostoso querer",
de sentimento e emoção,
é puro fogo queimando nas retortas da "alquimia" da alma,
da qual meu Ego, inadvertidamente, se aproximou sem os devidos cuidados, como um desajeitado curioso em algum laboratório a correr perigo!
O Amor pode queimar quem dele pensa fazer possessivo uso, usuário que quer se ver livre de suas auto criadas consequências e respostas, das quais quer se livrar,
lambadas da vara que volta sem cessar,
sem dúvida,
por dívidas de vidas.
Bater na porta do AMOR?
Disse o Mestre: "Bate, e se abrirá"!
Quem quer bater nessa porta?
Pois então que saiba como bate e porque bate,
pois a resposta do Amor sempre vem,
impessoalmente deliberada,
e será pessoalmente recebida,
com látego e surpresa.
Amo,
mas sei,
Só quero aprender como amar o AMOR.
terça-feira, agosto 29, 2017
quarta-feira, agosto 02, 2017
Erráticas certezas
Carlos Wagner
Incertas, furtivos mergulhos no paradisíaco, Lembranças aguçadas, dias de sol no íntimo. Incertas, acertos, por certo, fico admirado, combino com o nada, útil lente de ver o agora, certas canções, certos sibilos, certos brilhos nos olhos. A certeza fugidia se expressa repentinos clarões, não me assusto, não surto, furto lembranças de glória, fico incertamente tranquilo, o paraíso é onde estou. E o que mais?
All things must pass, o primeiro trabalho solo de George Harrison após a separação dos Beatles, em 1970, é considerado por grande parte da crítica como a melhor e mais completa realização musical de qualquer um de seus ex-integrantes. Um feito extraordinário para quem fora deixado em segundo plano como compositor pela dupla Lennon/McCartney, e mais ainda considerando a discografia posterior deles, e o fato de George ter feito um álbum triplo, o primeiro de um único artista, com o repertório que trazia represado. Justamente por isso, não chega a se tratar de um álbum conceitual. Ainda assim, todo ele traz implícita a visão de mundo e de religiosidade que George fora formando nos últimos anos, ao procurar as filosofias orientais. A fusão entre estas experiências com a música e a filosofia indianas e o histórico musical de Harrison são o fio condutor de All things must pass. E o single escolhido para apresentar o álbum ao público resume e define esta fusão, trazendo de um lado My sweet Lord, e de outro Isn’t it a pity.
São duas canções de origens bem diversas. My sweet Lord havia sido composta apenas um ano antes, mas já fora gravada pelo cantor de soul Billy Preston. Isn’t it a pity era mais antiga, de 1966, mas fora deixada de lado pelos Beatles sucessivamente nos álbuns Revolver, Sgt. Pepper’s e Let it be. George inicialmente não queria que fosse lançado nenhum single, para não tirar o impacto do lançamento do álbum. Os produtores preferiam destacar My sweet Lord, que Harrison temia que fosse interpretada apenas como uma canção religiosa. Harrison preferia Isn’t it a pity como o primeiro single do álbum, tendo sido demovido pelo tamanho da faixa – mais de sete minutos. Ao fim, foram lançados singles com combinações diversas de canções em diversos países, incluindo What is life na Inglaterra e Apple Scruffs em outros países. Porém, nos EUA decidiu-se que o compacto seria lançado como tendo dois lados A, uma invenção dos Beatles para lançar Day tripper/We can work it out, em 1965. Esta decisão quase acidental, colocar face a face estas duas canções, acabou tornando este compacto um díptico, uma joia em si extraída da grande joia que é a estréia de Harrison. Uma canção para Deus, uma sobre os homens.
A inspiração para My sweet lord veio do conhecido hino religioso Oh happy day, com a qual manteve semelhanças harmônicas. A passagem do Aleluia ao Hare Krishna é apenas mais um detalhe numa letra que se refere ao Senhor sem nomeá-lo, apenas expressando o desejo de alcançá-lo e conhecê-lo, e uma melodia cuidadosamente desenhada como a fusão perfeita entre um canto gospel e um mantra, em forma e conteúdo, com suas perguntas e respostas, os versos ascendendo à nota fundamental em V/I como expressão de uma vontade imensa, e o clamar pela divindade deslizando num II/V, indo à dominante como algo que não se alcança, e também a repetição de uma pequena fórmula com pouquíssimas variações para causar o efeito hipnótico, induzir ao transe. Faça o exercício mental: imagine esta canção num coro protestante, ou numa roda hare krisna, com suas respectivas danças, palmas e pandeirolas.
Onde My sweet lord é um louvor, Isn’t it a pity é um lamento. No lugar do andamento alegro, um andante marcado, em especial pela bateria tão característica de Ringo Starr. Se My sweet lord é sobre fé, Isn’t it a pity é sobre compaixão. No lugar das afirmações e ascenções melódicas, uma sutileza em versos como How we break each other’s hearts e How we take each other’s love, que desembocam em acordes diminutos e dominantes secundárias, terminando em suaves descidas de apenas meio tom, fora da escala original. A primeira pessoa do singular da busca individual de My sweet lord passa para o plural e torna-se uma busca coletiva não do transcendente, mas do simples entendimento mútuo. Embora composta antes dos problemas de relacionamento que deram fim ao grupo, Isn’t it a pity é frequentemente ouvida como um comentário a eles, mas, mesmo que eventualmente tenha sido composta com este foco, a inclusão em All thing must pass alarga seu escopo e a alinha com as elucubrações existenciais do álbum, transformando-a numa perquirição da natureza humana e sua possibilidade de redenção.
Se filosoficamente All things must pass é extremamente coeso, musicalmente ele corria o risco de soar como uma colcha de retalhos, contendo canções de diversos momentos. Um dos fatores principais a contribuir para a definição da sonoridade do álbum é a produção do americano Phil Spector, que já fora responsável por Let it be, último e controverso álbum dos Beatles, em que interferiu tremendamente na sonoridade da banda. As gravações estenderam-se por meses entre imprevistos como um braço quebrado de Phil numa queda no estúdio e a morte da mãe de George, mas também porque o método de Phil exigia gravações sobre gravações. Chamado Wall of sound, na definição de seu criador era uma abordagem wagneriana do rock’n roll, e consistia na gravação em muitas camadas, com instrumentos gravando suas partes várias vezes (dobrando, na gíria de estúdio) e com reverberação, dando uma impressão grandiosa e orquestral. A gravação de My sweet lord inclui ao menos doze músicos, sendo seis violões e guitarras (uma tocada por Eric Clapton, outras duas por George), dois pianos (elétrico e acústico) e duas baterias. Isn’t it a pity não fica atrás, com dois pianos e dois órgãos, além de varias guitarras e do arranjo orquestral. O resultado é épico, grandioso, e cai como uma luva tanto nas especulações existenciais como no louvor ecumênico de Harrison, servindo como amálgama entre elas.
Ouvido como o díptico que afinal é, o compacto My sweet lord/Isn’t it a pity traz uma mensagem algo ambígua. Afinal, esta redenção que é simultaneamente alcançar a visão da divindade e o entendimento entre os homens, é possível? I really wanna see you / but it takes so long, my lord, canta George, para pouco depois como que se corrigir: I really wanna show you / that it won’t take long. Até mesmo em meio ao louvor, está explícita a dificuldade de viver num mundo material – título de um álbum posterior de George, Living in a material world. Em Isn’t it a pity, estas dificuldades ficam mais patentes, ou melhor, toda a canção é sobre elas. A sensação final de uma escuta sequencial pode ser desalentadora. Ou poderia. Para evitar esta conclusão desesperançada ao fim de Isn’t it a pity, contrária a suas próprias crenças pessoais, George Harrison não hesitou em recorrer a ninguém menos que Lennon e McCartney.
Assim como My sweet lord traz em si a dicotomia e a resolve com a alternância entre as saudações aleluia/hare krishna, Isn’t it a pity encerra-se com uma espécie de mantra responsável por sua extensão de sete minutos. What a pity, pity, pity, clama George, como uma pergunta lançada ao céu. E a resposta vem surgindo aos poucos em fade in, no coro que vai tomando corpo e cantando o la la la de… Hey Jude, a canção sobre esperança e superação composta na verdade por Paul para o filho de Lennon, Julian, quando seus pais se separavam e John casava-se com Yoko Ono. (Segundo Paul, a contribuição de Lennon na canção é pela manutenção do verso the movement you need is on your shoulder. Paul o achava fraco e queria trocá-lo, mas Lennon o convenceu a mantê-lo considerando-o o melhor verso da canção.) Hey Jude, de 1968, é de certa forma uma resposta involuntária aos questionamentos de Isn’t it a pity, ou talvez não a resposta, mas a admissão de que it takes so long, mas que é preciso, apesar de tudo, não desanimar. A citação de Hey Jude é um acerto de contas com os Beatles, ao sinalizar que, da dor do rompimento, o que foi feito de bom sobrevive e dá sentido ao vivido, mas é também um consolo e um alento a quem não vê esperança, enxuga as lágrimas de quem não enxerga a beleza em torno, toma uma canção triste e a torna melhor.
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Artigo publicado em maio de 2016 na revista digital Acorde! O aplicativo da revista pode ser baixado gratuitamente aqui, dando acesso a diversos e excelentes colunistas e matérias em vídeo, áudio e escritas.